“Como um sujeito que arrasta para a lama milhares de pequenos investidores brasileiros, que faz cair abaixo de zero a credibilidade do país no exterior, que pulveriza boa parte da riqueza nacional, simplesmente desaparece da cena pública?”
Enquanto o Dieese constata que o custo de vida vem crescendo ― a cesta básica subiu 10% em nove capitais em 2013 ―, não custa nada observar que o custo da morte mergulhou em queda livre. Seguiu a mesma curva mórbida das ações do Grupo X de Eike Batista. E isso não foi à-toa, como logo veremos. A morte nunca custou tão pouco e nem esteve ao alcance de tanta gente. Difícil não concluir, ao atentar para algumas manchetes dos últimos dias, que entramos em 2014 numa espiral descontrolada de ultra-violência. Para ilustrar o fato, cito alguns exemplos edificantes escolhidos aleatoriamente:
É verdade que os políticos não dizem nada sobre essa situação aterradora, sequer a percebem e tudo vai se passando como se nada estivesse acontecendo. Sobre a ministra dos Direitos Humanos não há o que dizer, já que no meio desse pandemônio ela não disse nada. Ou seja, a existência de um Ministério dos Direitos Humanos em janeiro de 2014 é um enigma. Já os políticos brasileiros, demonstram a maturidade de sempre, não enxergando um palmo diante do nariz. Eles só têm olhos para ver as lutas da UFC, a nova edição do Big Brother, as novelas, os desenhos animados americanos em 3D e outras idiotices do mesmo calibre. Sem esquecer, é claro, todo tipo de imbecilidade que podem acessar através de seus smartphones.
O ministro da Justiça tenta passar a imagem de gerenciador rápido e limpo de “crises”. Leia-se: de situações escabrosas. Lembra o personagem Winston Wolf, mais conhecido como The Wolf (o Lobo), em Pulp fiction. No filme, é ele que, depois do disparo acidental da arma que explode a cabeça do jovem negro, deixando o interior do carro coberto de miúdos de cérebro e sangue, é mobilizado pelo chefe, Marsellus Wallace, para administrar a situação. Pois bem. O Lobo conseguiu fazer desaparecer o corpo sem cabeça e o carro, manobrando com precisão cronométrica até que nada sobrasse do delito, a não ser uma sensação de alívio e uma atmosfera risível com o banho de mangueira e a nova indumentária da dupla de assassinos. O ministro da Justiça, ao contrário, correu para o Maranhão, montou um palco para a mídia e acreditou piamente que tinha “apagado um incêndio”. Outra prova da inocência oportuna dos nossos políticos de plantão. E de deboche com a opinião pública. A magnum opus que saiu do improviso ministerial foi uma gambiarra de quinta, que não pôde ser comemorada porque, como deve ter dito o mordomo do cerimonial, “infelizmente não foi possível disponibilizar a lagosta para o jantar”. Mas em terra de Lobão quem precisa de Lobo? O festival de vídeo amador do Presídio de Pedrinhas, ainda que tenha chocado o público mundial com a sua última edição, carece de algum amadurecimento para competir com o cinema de Tarantino.
Eis que tudo isso ilustra um divórcio completo, abismal, do qual se tira sempre mais um palmo de terra, entre o governo e seus aliados patológicos, de um lado, e a consciência política da massa da população, do outro. Por mais horrorosa e impactante que seja a conjuntura da violência nesse instante no país, nada se pode esperar da camarilha política. Assim como em todos os demais problemas urgentes, que vão da dengue hemorrágica à epidemia do crack, da situação pavorosa dos presídios ao descalabro da saúde pública.
O que pode explicar a febre atual de ultra-violência? Talvez exista uma mega causa, mas temos que começar pelo varejo. É evidente, por exemplo, que se generalizou a percepção de que vivemos numa época de “vale tudo”. As siglas UFC e MMA são signos abertos da degradação humana. Também o que se viu e se vê diariamente de permissividade em relação aos gastos, desmandos, bandalheiras, relativas às obras da Copa, são suficientes para disseminar a sensação de que qualquer linha divisória efetiva, qualquer interdição aceitável, qualquer verdadeira proibição, deixou de existir, e muita gente já não se contenta em permanecer aquém da linha da loucura. O desejo de matar, de fazer sofrer os adversários, é universal. Mas uma coisa é dizer “vou arrancar a cabeça dele”, outra coisa é passar ao ato e decapitar o adversário. E mais ainda: filmar esse e outros atos horripilantes. Essa travessia ao cúmulo do sadismo criminal é uma ruptura completa dos laços sociais.
Mas que laços sociais resguardam indivíduos que estão sob a guarda de um estado que permite que centenas de presidiários sejam brutalmente assassinados? O laço social que cumpre ao estado, nas penitenciárias, é justamente esse: resguardar a integridade dos presos que estão sob sua tutela. Mas esses presos vivem num mundo em que as regras sociais, por subtração do Estado, foram inteiramente destroçadas. Os resultados não tardam a aparecer. A multiplicação dos casos de mutilação, de vingança selvagem, de paroxismo da maldade, mostra claros sinais de loucura coletiva. De uma parte substancial da coletividade. Inclusive daquela que se vinga dos seus presos deixando-os chegaram a tal grau de degradação em masmorras repugnantes. Aqui estamos no Auschwitz brasileiro, reeditando a história do livro da jornalista Daniela Arbex, O holocausto brasileiro, que mostra o vínculo de loucura e assassinato em massa no maior hospício brasileiro. Mas o Brasil inteiro agora vai ganhando a feição de hospício. É a insânia ao quadrado dentro de uma casa de loucos.
Ou será que as apostas aventureiras e absurdas feitas por Eike Batista com o dinheiro público não foram uma forma clara de permissividade delirante? E seria menos aloprada a facilidade com que os cofres públicos se abriram para ele? E os 55 anúncios de descobertas de petróleo com que a OGX hipnotizou os acionistas durantes dois anos e meio? E o silêncio ensurdecedor que paira em toda parte, mas, sobretudo, nos meios políticos e na imprensa, a respeito do caso Eike Batista, não são todos sintomas de psicose social? Eike Batista, de repente, deixou de existir. Foi decretado o toque de recolher em relação ao seu nome e a sua existência. O que interessa a ele mas, também, aos que apostaram muitos bilhões do dinheiro público nele. Quem?
Note-se que PT e PSDB são solidários no silêncio. Difícil encontrar oposição mais cúmplice. Até isso está valendo. Por falar em “vale tudo”, devemos lembrar que o templo mais alto da luta perversa e sem regras, a UFC, teve seus direitos aqui comprados por Eike Batista. Sim. Não foi pequeno o seu papel como mega investidor da violência no Brasil. Não devemos esquecer também, quando se trata da quebra de todas as regras, que apesar da morte de um ciclista, do atropelamento de outro, bastante idoso, das inúmeras multas, o filho de Eike manteve a habilitação e segue livre como um passarinho para os seus rolés. Quem está em vias de ir para a cadeia é a turma inocente do rolezinho, que anda de busão e tem sempre uma viatura por perto oferecendo carona.
É interessante conferir o que uma matéria publicada em O Globo, que não é exatamente um órgão da imprensa radical, vazou sobre o esfriamento das relações de Eike Batista com o governo federal na esteira da crise do grupo X:
Com trânsito livre no Palácio do Planalto até o início deste ano, Eike Batista hoje é um nome proibido no círculo central do governo federal, que assiste à derrocada das empresas do grupo com desânimo. Enquanto contava com o estímulo do governo – Dilma Rousseff chegou a declarar que o Brasil precisava de mais empresários como Eike, elogiando diretamente seu “espírito empreendedor” -, ele usufruiu de uma série de benesses, de estímulos financeiros à aceitação sem contestação de suas agora questionadas previsões.
Pois é essa estratégia primária, de encobrir pelo esquecimento e o silêncio, que na verdade engrossa o pirão do caldo da loucura. Ainda mais quando o governo federal, tendo se comprometido tanto com Eike Batista, teve que, mesmo fazendo o país amargar prejuízos e humilhações, correr em seu socorro, para evitar prejuízos ainda maiores. Ora, porque será que a bolsa de São Paulo teve, entre 80 outras do mundo, o segundo pior rendimento no ano de 2013 ou, dito de forma positiva, a segunda maior queda? Vejam o que diz a matéria linkada:
As maiores quedas do Ibovespa, índice que reúne as ações mais negociadas do país, foram da OGX (-95%), que já não faz parte mais do indicador, e da MMX (-84%), duas empresas fundadas por Eike Batista. A primeira, de petróleo, entrou em recuperação judicial e já não pertence mais ao empresário.
Como um sujeito que arrasta para a lama milhares de pequenos investidores brasileiros, que faz cair abaixo de zero a credibilidade do país no exterior, que pulveriza boa parte da riqueza nacional, simplesmente desaparece da cena pública, por uma passe de mágica, como se não existisse Ministério Público Federal? Será que o fato de a Petrobras ter perdido R$ 40 bilhões em 2013, sendo a empresa de maior queda absoluta no mundo em 2013, nada tem a ver com Eike Batista e o fato da sua petroleira, a OGX, ter perdido 95% do seu valor? A crise de confiança desencadeada por Eike Batista em nada afetou a imagem da Petrobras para o investidor no exterior?
Hoje, de cima abaixo, sente-se no Brasil que a cara feia de Dilma, a simulação de rigidez e rigor, era conversa para boi dormir. A trajetória crescente do descaso com as regras sociais pode ser medida por vários indícios. O crime e a violência são indicadores fortes. Mas existem muitos outros que funcionam como um termômetro seguro do grau de ebulição da demência generalizada. A farsa ou o descaso econômico é um deles. Compare-se, por exemplo, o enorme crescimento do recall no país que cresceu 62% ― percentual absurdamente alto ― de 2012 para 2013. Na lista estão os seguintes itens:
Automóveis: 58
Caminhões: 3
Bebidas: 4
Brinquedos: 4
Umidificadores de ar: 1
Lavadoras: 1
Peças e componentes elétricos: 2
Motocicletas: 9
Bicicletas: 6
Cadeiras plásticas: 6
Peças e componentes mecânicos: 4
Cadeiras infantis: 4
Cosméticos: 1
Medicamentos: 3
Produtos e equipamentos para saúde: 3
Total: 109
O que algumas das matérias que citamos ao início desse artigo mostram é que saímos do caso a caso, do varejo da violência, para acontecimentos de tipo serial. É óbvio que assassinatos, chacinas, perseguições etc., não são novidades. Mas uma dúzia de chacinados, várias dezenas de presos assassinados, homossexuais sendo barbaramente executados, grupos de trabalhadores sendo objeto de discriminação racial, uma maioria de jovens das periferias sendo ameaçados e perseguidos, isso parece novidade. Mas principalmente a conjunção de tantos acontecimentos macabros ao mesmo tempo mostra que a caixa de Pandora foi aberta de vez. Esperemos que a revolta generalizada despertada com a morte de Amarildo, e agora com o barbarismo covarde contra o adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos, abra uma época igualmente marcada, como a temporada de 2013, por protestos em série. Esse é o único antídoto contra o Mal.
E não alimentemos ilusões: como argumentamos em um artigo de 2013 publicado no Congresso em Foco, com base em dados estatísticos relativos aos riscos para jornalistas pelo mundo, o Brasil é o país mais perigoso para quem se atreve a flertar com a verdade. Em 2012 tivemos o maior número de jornalistas assassinatos em um país de “normalidade democrática”. Assim como matam no trânsito impunemente, como matam nas UPPs (um projeto de Eike Batista para promover a sensação de segurança, útil aos seus negócios na cidade do Rio de Janeiro), como matam em massa vítimas anônimas com o desvio de bilhões em verbas que poderiam ir para a saúde, matam também por ódio a quem diz a verdade. Como eu já disse, foi decretado o toque de recolher em relação ao nome de Eike Batista.
Congresso em Foco
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