A inédita mobilização que as redes sociais promovem cutuca quem exerce função pública e os partidos políticos brasileiros. Destaque-se que a fragilidade organizativa da movimentação NÃO indica que a esse despertar ativista faltará continuidade e ampliação: há um caldo de cultura de descontentamento geral.
Pela primeira vez em quase meio século de presença em manifestações de rua - desde 1966 (contra a ditadura) - vi tamanha multidão sem carro de som, sem coordenação explícita, sem lideranças personalizadas. O clima bonito, de cidadania plural reunindo todas as 'tribos', diz, de maneira difusa mas não confusa, o que quer. Algumas faixas e um mundo de cartazes artesanais expressavam críticas aos governantes - de todos os níveis -, aos abusivos gastos públicos com a Copa, à repressão policial, loas ao despertar de consciência, estímulo ao fazer histórico, pedidos de apoio à cultura popular, defesa da educação e saúde públicas de qualidade, repúdio à corrupção e... aos partidos. A despeito disso, as consignas são todas políticas, por óbvio.
Bandeiras de partidos no ato foram tensionados o tempo todo: "Ei, você aí, a bandeira do protesto é a bandeira do Brasil". Identificado por muitos, não sofri qualquer repto - para minha própria surpresa. Brinquei com alguns jovens: "mas eu tenho partido, tomo partido!" Eles riam e diziam que me "aliviavam" porque eu "era honesto". O repúdio, portanto, parece ser ao padrão dominante na política, marcada pelo fisiologismo e pelas negociatas. Negação saudável da politicagem reinante. A moçada, que só conheceu o PT do poder e não vê nele 'ethos mudancista', quer uma ideologia para viver - e não a tomada do Poder. A maioria não identifica nos partidos - nem nas entidades de trabalhadores e estudantes 'oficializadas' - a dimensão utópica do vir a ser. No limite, diria que os jovens não enxergam a grande Política nos partidos políticos, e têm razões para isso.
Junto a essa forte descrença também há sonho: "Desculpe o transtorno, estamos mudando o país" é consigna recorrente, emblema do aspecto genérico e diverso dos protestos. Trata-se de um processo educativo, de ensaio e erro. Comparo essa ojeriza à política ao vômito quando comemos alguma coisa estragada. Depois de lançá-la fora dá um alívio, o mal estar passa e a gente volta a ter apetite. A política institucional no Brasil anda mesmo muito apodrecida e privatizada. Urge celeridade e vontade, na política oficial, para afinal avançar rumo a uma Reforma que aproxime a representação dos representados, e não apenas das grandes corporações que financiam as campanhas vitoriosas, como atualmente. É imperativo imediato ampliar os mecanismos efetivos de participação direta da população.
Acredito que o processo de amadurecimento desses movimentos, que fogem inteiramente aos padrões clássicos, inclusive dos partidos de esquerda, implicará em que eles tenham mais organicidade e comando, até para dialogar com as autoridades do questionado Poder e dar consequência aos seus justos pleitos. Sem pauta definida, mesmo ampla, e interlocutores chancelados, o redemoinho das ruas não sustentará em longo prazo essa comovente agitação cidadã.
No bojo da movimentação de massa, há grupos minoritários que entendem que é preciso confrontar os símbolos do Poder de forma direta e violenta. Eles, 'autonomistas', não aceitam outra orientação que não a própria e julgam estar realizando 'atos revolucionários' quando tentam tomar prédios públicos ou atacar agências bancárias e outras lojas. Em toda cidade grande há segmentos assim e setores sociais inorgânicos que aderem facilmente às depredações em um espaço urbano que lhes é, no cotidiano, hostil. Estes, com suas ações laterais e de pouca racionalidade, não representam a maioria que tem ido às ruas, mas podem criar desgaste e antipatia em relação aos protestos democráticos e pacíficos dos quais emergem como 'cauda envenenada'.
Chico Alencar é deputado federal pelo PSOL do Rio de Janeiro. |
Chico Alencar
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