Contribuição ao IV Congresso do PSOL
Construir um projeto socialista de transformação é se colocar permanentemente em debate, é estar sujeito à mudança e buscar a democracia em todos os momentos da vida partidária. Só dessa maneira torna-se possível para os militantes do PSOL uma inserção legítima nas lutas, que nada mais são que o desdobramento das contradições vividas e sentidas no cotidiano nos mais diversos meios sociais.
É a partir da contínua criação de um sentido cotidiano de pertencimento às causas que nos dizem respeito que se pode de fato estabelecer uma relação de cumplicidade e transformação. Assim, acreditamos que a inserção do militante do PSOL no seu meio social pode criar o sentido de política como campo de mudança, bem como a significação da experiência vivida.
Acreditamos no debate como o instrumento essencial a essa perspectiva, ou seja, temos como cerne a isegoria*. Deste modo, uma revolução para nós só é possível se praticada diariamente nas lutas e discussões. A consciência de classe, da qual o marxismo ortodoxo se arvora portador e porta-voz, não se efetiva na realidade, pois não é entendida como processo, não é construída por pessoas reais, nos seus mais diversos meios, mas pensada enquanto operação mecânica, vertical e autoritária. Para superar essa concepção, faz-se necessária a defesa do PSOL como um partido democrático, que carrega liberdade não apenas no nome! É no Partido Socialismo e Liberdade que a autonomia dos indivíduos tem a chance de prevalecer sobre a tentativa de constrangimento tão presente nas estruturas burocráticas dos partidos de esquerda. É nesse partido que uma gama tão variada de pessoas, vivências, interesses, concepções e referências teóricas distintas pode realizar política com tamanha liberdade. Isso possibilita enxergar no PSOL um espaço lúdico e aberto, partido político capaz de criar uma relação de cumplicidade com seus filiados e com a política realizada por eles.
É claro que isso não é válido para todo o partido, que ainda é bem novo, plural e cuja atuação está ainda circunscrita a uma conjuntura de enorme fragmentação da população, cooptação dos movimentos sociais, e perda de legitimidade da política, principalmente a institucional. Longe de ser perfeito, o PSOL no entanto abriga em seu seio distintas concepções, que por sua pluralidade imprimem uma dinâmica permanente de discussão e disputa de perspectivas, impedindo assim a cristalização em torno de um projeto unilateral.
Para além da organização tradicional, em correntes, diretórios e executivas, o PSOL permite ao militante atuar em outros espaços, fundamentalmente transversais: os núcleos e setoriais. Os primeiros permitem uma militância mais dinâmica, por atuarem principalmente por meio de laços criados a partir de um tema ou um local comum. Favorecem também a livre troca de ideias e experiências, por serem espaços democráticos e igualitários, além de possibilitarem, através da socialização, um maior conhecimento sobre as ações e debates internos do partido. Da forma como pode ser conduzida dentro do PSOL, é uma forma de organização muito poderosa, pois confere aos militantes maior legitimidade e afinidade política dentro do seu campo de atuação. Portanto, defendemos a organização partidária em núcleos de base, por entendermos que essa forma é a que mais respeita e mais possibilita vazão ao nosso conteúdo. Já os setoriais, espaços nacionais relacionados a temas específicos, foram criados para proporcionar ao partido, por meio de estudos, debates, seminários e ações conjuntas, maior acúmulo e respaldo com relação a essas questões, subsidiando a formação e qualificando a atuação dos militantes nessas diversas pautas. Atualmente o PSOL conta com os seguintes setoriais: Mulheres, LGBT, Negros e Negras, Ecossocialista, Saúde, Comunicação e Cultura, Política sobre drogas e Direitos Humanos.
Neste sentido, nossa intenção é pontuar algumas considerações da forma-partido como modo imprescindível de organização política coletiva e mediação de transformações na sociedade. Em primeiro lugar, destacamos que a forma-partido é necessária, porém insuficiente. Entendemos que o partido é instrumento – meio – do movimento, e não o inverso. Para além da afirmação retórica “devemos respeitar as decisões do movimento como se fossem nossas”, queremos afirmar que o partido não deve dirigir o movimento, pois, quando o faz, acaba por dominá-lo reduzindo seu potencial. De outro lado, isso não significa dizer que o partido é um espaço não intencional e vazio a ser preenchido pelo movimento. Ele age, elabora, propõe, avança, recua. Isto é, queremos dizer que existe uma centralidade do movimento em relação ao partido, de tal modo que poderíamos pensar essa relação como movimento-partido-movimento: “[...] a socialdemocracia não está ligada à organização da classe operária, ela é o próprio movimento da classe operária.” (RL, ibidem).
Assim, é necessário identificar duas dimensões-chave para a compreensão desta ideia:
a) caráter conservador da forma-partido: nas palavras de RL, “o papel da direção socialdemocrata é, portanto de caráter essencialmente conservador”, pois tende a eternizar e cristalizar a multiformidade/flexibilidade do movimento (transformar movimento em fórmula). Quando afirmamos que a forma-partido carrega elementos conservadores, temos em mente dois sentidos: 1) movimento cognitivo-político (próprio do ato de conhecer), com a intenção de apreender a realidade e tirar daí ações práticas-concretas, acabamos por empobrecê-la; 2) a estrutura institucional do partido contribui para subsumir as experiências singulares de seus filiadxs (ex. filiadxs em núcleos de base vs. filiadxs à executiva nacional).
b) caráter transformador da forma-partido: compreensão do partido como espaço para ação e construção política coletiva vs. a tomada de decisão atomizada. A forma-partido pode comportar, como em outros momentos da organização política fora destes, formação humana, socialização de experiências, e o modo de vida da nova sociedade por vir (desde, é claro, que assumamos o princípio ético da alteridade). O partido é mecanismo político institucional de políticas públicas. Ele é meio – mas não apenas ele – para melhores condições de vida: mudamos as vidas das pessoas, não apenas os parlamentares! Ao lutarmos e construirmos formas de empoderamento e afirmação de direitos, dizemos que o nosso caminho é o da reforma e revolução.
Sendo assim, defendemos que a abordagem simultaneamente capilar, específica e intensa que a experiência de núcleos de base traz para a construção do partido e de uma consciência socialista é, ao nosso olhar, essencial para dar conta da heterogeneidade tão característica da vasta realidade brasileira. Portanto, reiteramos a importância dessa forma de organização para a vitalidade do partido e defendemos não só que xs militantes do PSOL organizem-se em Núcleos de Base, mas que estabeleçam entre esses grupos um diálogo vivo e constante, uma ampla rede nacional de núcleos, que possibilite aprofundar nosso debate e, com isso, estabeleça-nos como uma alternativa socialista e libertária para o Brasil.
Núcleo Isegoria
* “Para os atenienses (…) um dos princípios primordiais da democracia se sustentava na capacidade e no direito de tais pessoas [aquelas que devem trabalhar para viver] de realizarem julgamentos políticos e de falarem sobre eles em assembleias públicas. Eles inclusive tinham uma palavra para isto, isegoria, que significa ‘igualdade’ e ‘liberdade de expressão’ (e não só esta última no sentido em que nós a entendemos na atualidade).”
(Ellen Wood, Capitalismo e Democracia)
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