quarta-feira, 4 de abril de 2012

Saudade do Ciep


Saudade não é nostalgia. Supõe emoção da perda. Evoca seres, fatos e feitos que a memória registra nos arquivos mais valiosos da mente. Embora findos na realidade circunstante, sobrevivem na essência do pensamento de quem lhes testemunhou o valor. Não é a lembrança fria do passado, mas a referência que anima o presente, ainda que de forma imperceptível.

O Centro Integrado de Educação Popular, Ciep, é marco na história recente do país. Inclui-se entre as poucas ousadias do Estado brasileiro destinadas à superação do atraso, pré-requisito para o fim da desigualdade social que macula a cidadania.

Gerado no Rio de Janeiro durante o governo de Leonel Brizola, nasceu para expandir-se por todo o território nacional. Primava pelo princípio inegociável da qualidade, sem o qual a sociedade igualitária nunca deixará de ser sonho ingênuo da população, acalentado pelos embustes das elites que lhe roubam a cena.

Concebido pelo talento de Darcy Ribeiro, tinha o propósito de garantir à criança pobre o direito à educação plena, instrumento libertador que lhe tem sido negado em nome de interesses mesquinhos que mantêm a ordem dominante.

Valendo-se de projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer, cada Ciep acolhia mil alunos em espaços compatíveis com a dignidade ambiental que a educação requer. Além de salas de aula, biblioteca, quadra esportiva, era dotado de atendimento médico e odontológico, cozinha e refeitório.

O conteúdo pedagógico enfatizava a escrita, a leitura e a aritmética, sem prejuízo das demais matérias. Buscava qualificar o aprendizado da linguagem a fim de que a comunicação erudita fosse também assimilada pelas classes pobres, nivelando por cima a inadiável progressão social dos excluídos.

Implantada no coração de uma comunidade de despossuídos, despontava como avanço para a elevação da autoestima dos moradores, propiciando-lhes acesso a um direito que sempre privilegiou as classes ricas. As famílias orgulhavam-se da escola pública que as tratava com distinção. Crianças e adolescentes tinham no Ciep a chance real para aprendizado lúdico, prazeroso, interativo. Trabalhavam a cognição em ambiente seguro, dignificante.

Anteviam a realização de originalidades potenciais, crescendo-lhes a expectativa de vencer a humilhante segregação que os estigmatizava. Desenvolviam atividades educativas, artísticas, desportivas e culturais em tempo integral, das oito horas da manhã às cinco da tarde.

Permaneciam sob os cuidados da equipe de educadores durante o período em que a maioria dos pais saía de casa para trabalhar. Recebiam alimentação, assistência à saúde, além do amparo ao organismo em fase de crescimento físico e desenvolvimento neuropsicomotor.

A educação oferecida não se restringia aos limites medíocres da escolaridade em vigor. Ia muito além. Reproduzia a visão de Winnicot, para quem educar é garantir a estimulação favorável em ambiente seguro e afetivo. Darcy Ribeiro definiu bem o projeto: “Sem essa base, a criança estará condenada à marginalidade e ao risco de cair em delinquência”.

E completou: “Isso é verdade, sobretudo para a criança das áreas metropolitanas, que tem mais a escola do lixo e da criminalidade do que a escolaridade mínima indispensável para se realizar pessoalmente através do trabalho e para exercer conscientemente a cidadania”.

O compromisso social era abrangente. Atraía crianças moradoras de rua que, motivadas, mudavam de vida. Passavam a residir na escola, onde ficavam sob os cuidados de “pais sociais” — funcionários preparados para a preciosa missão.

A construção das unidades era rápida; o custo, reduzido. Fundava-se na lógica do pré-moldado, ganhando celeridade na execução. Quinhentas delas chegaram a enriquecer o cenário educacional do Rio de Janeiro.

Com o Centro Integrado de Educação Popular disseminado país afora, a sociedade já teria dado o salto para a dimensão igualitária sonhada. Infelizmente, obras que visam à igualdade social serão sempre desmontadas pelo poder econômico.

O modelo Ciep foi desfeito há mais de vinte anos. Restaram os prédios precários, convertidos em escolas desqualificadas, coerentes na perpetuação da pobreza. Desativado, abriu caminho para a UPP – Unidade de Polícia Pacificadora. A desigualdade social foi assim preservada. Para os ricos, a política; para os pobres, a polícia.

O Ciep desperta saudade. É o PAC que transformaria o país. O projeto foi encerrado, mas a ideia não morreu. Os dirigentes deveriam repensar a educação nacional, sem preconceito. Experiência não falta.

Dioclécio Campos Júnior é médico, professor
titular aposentado da UnB, secretário de Estado
da Criança do DF, foi presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria.

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