Educação não é mercadoria!
No ano de 2009, ingressei na rede municipal de educação do Rio de Janeiro como professora de História e fui parar numa escola localizada num bairro pobre da Zona Norte, onde encontrei a seguinte situação: um prédio com incontáveis problemas estruturais (vazamentos, rede elétrica precária, falta d’água, entupimento nas saídas de esgoto, infestação de baratas, iluminação, climatização e acústica inadequadas, falta de filtro no bebedouro dos alunos), falta de funcionários (professores, inspetores, pessoal de secretaria, agentes de portaria etc), salas de aulas lotadas (aplicar prova é um problema, mas eu desenvolvi a técnica “fila A X fila B”), alunos que apresentavam muitas dificuldades de aprendizagem, uma total falta de planejamento pedagógico, falta de material (a escola me oferecia, apenas, um mimeógrafo; papel higiênico, nem sempre é garantido), falta de valorização profissional e total desestímulo à formação continuada dos educadores. O mais chocante foi constatar que a falta de estrutura na minha escola não era muito diferente da realidade vivida por colegas meus, que também tinham acabado de ingressar na rede (em diferentes regiões da cidade).
Não é nenhuma novidade dizer que a educação pública brasileira sofre, há décadas, com o descuido de sucessivos governos, que pecam tanto pela falta de investimentos no setor (em melhorias estruturais, em valorização profissional ou em assistência estudantil), quanto pela falta de planejamento pedagógico de longo prazo. Como consequência, temos índices assustadoramente altos de analfabetismo, de evasão escolar e de reprovação, o que denuncia a precarização de um dos diretos mais básicos garantidos pela Constituição: o acesso a uma educação pública de qualidade.
A precarização do ensino público se intensificou na década de 1990, com a universalização da educação básica. Nesse momento, as parcelas mais pobres da classe trabalhadora passaram a ter acesso à escola pública, que, até então, era frequentada prioritariamente pela classe média. Esse processo foi paralelo à ampliação da rede privada de ensino (iniciada ainda na Ditadura), para onde se direcionaram os filhos das famílias com um orçamento mais confortável, quando a qualidade do ensino público começou a despencar, já que a ampliação das vagas não foi acompanhada pelo aumento proporcional dos investimentos diretos no setor.
Contudo, a possibilidade de pagar por uma boa escola para seus filhos não é uma realidade para a grande maioria das famílias brasileiras. Sem opções, a maior parte da população matricula seus filhos em escolas municipais ou estaduais. Isso significa que quem sofre com a baixa qualidade do ensino público (assim como em outros serviços públicos, como a saúde) é a população trabalhadora mais pobre, que não tem condições de pagar por serviços privados.
Na cidade do Rio de Janeiro, a realidade da educação municipal não se distingue muito desse processo. Mas aqui, além de vivermos os problemas estruturais decorrentes dos baixos investimentos diretos na rede pública de ensino (essa matéria do jornal O Dia fala que o atual prefeito não aplica os 25% do orçamento municipal em educação, como manda a Constituição – prática, aliás, adotada por muitos governos), temos passado por sucessivos ataques a nossa autonomia pedagógica – o que tem comprometido a qualidade de nosso trabalho. Só na última década, os profissionais da educação enfrentaram duas fortes investidas contra nossa atuação profissional. A primeira delas foi durante o mandato de César Maia (DEM), entre 2001 e 2009, que determinou a progressão continuada dos alunos (ou, no bom português, a aprovação automática), com o objetivo de melhorar a classificação do Rio de Janeiro no IDEB (já que a quantidade de aprovações ou reprovações contribui para o aumento ou para a redução do índice). Os efeitos dessa medida podem ser sentidos ainda hoje na rede, que apresenta um grande número de alunos que são analfabetos funcionais e, que, ao invés de receberem as condições necessárias para a superação de suas dificuldades, foram sendo “empurrados” durante sua vida escolar.
A segunda investida, teve início em 2009, com o mandato de Eduardo Paes e com a gestão de sua secretária de educação, Cláudia Costin. Sem qualquer formação ou experiência pedagógica, Costin foi responsável pela implantação de uma lógica gerencial meritocrática e produtivista na rede pública de ensino, baseada na política de bonificação por metas e na responsabilização dos educadores pelas falhas da educação pública.
Esse modelo de gestão foi muito utilizado nas escolas municipais dos Estados Unidos (destaque para Nova York), durante a década de 1990. No entanto, justamente no momento em que Costin resolveu adotar essa prática, uma de suas principais criadoras, a educadora Diane Ravitch, lançava um livro em que avaliava criticamente essa experiência, explicando que o modelo meritocrático e produtivista não melhorou o nível de aprendizagem dos estudantes e não fez com que os professores repensassem suas práticas pedagógicas. Apesar de sofrer muitas críticas (do Sindicato e de outros educadores) por recorrer a uma política claramente equivocada, Costin se recusou a dialogar com os educadores e vem, até hoje, passando por cima de nossa autonomia pedagógica em nome desse projeto.
Esse modelo tem como objetivos principais a geração de índices positivos (de alfabetização, de aprovação, de notas em testes nacionais e internacionais padronizados), sem a ampliação proporcional dos investimentos diretos; permitir que empresas privadas passem a atuar no setor, por meio de ONG’s, Organizações Sociais ou outras parcerias público-privadas (provavelmente, como uma forma de cumprir compromissos assumidos com os financiadores da campanha de Eduardo Paes); e a desmobilização da categoria, para que seja possível flexibilizar os direitos trabalhistas dos profissionais da educação, em conformidade com as exigências (conferir a página 60, desse arquivo) feitas pelo Banco Mundial, para a concessão do empréstimo de 1 bilhão de dólares à prefeitura, para que esta possa efetuar as obras necessárias para os Jogos Olímpicos de 2016. Vale lembrar, que a Claúdia Costin foi gerente de políticas públicas do Banco Mundial. Mas é claro que nada disso foi dito nas promessas de campanha de Eduardo Paes, quando ele se comprometeu a acabar com a aprovação automática e a recuperar a qualidade da educação municipal.
Assim que assumiu a Secretaria Municipal de Educação (SME), Costin determinou o uso dos cadernos pedagógicos (apostilas de conteúdo e de exercícios) e a aplicação de avaliações externas a cada bimestre. Argumentava-se que era preciso fazer um diagnóstico da rede, antes de se elaborar um plano de ação. Inicialmente, os cadernos pedagógicos e as provas bimestrais se limitavam à Língua Portuguesa e à Matemática. Mas já no ano seguinte, em 2010, o método foi estendido a Ciências e, a partir de 2011, a todas as outras disciplinas (exceto pelas provas bimestrais, que se restringem, até hoje, à Língua Portuguesa, à Matemática e a Ciências). Em 2011, foi inaugurada a Educopedia – uma plataforma online de aulas digitais, para que os professores utilizem em sala de aula. Todas as escolas foram, então, equipadas com aparelhos de Data Show, internet wireless e netbooks. Tanto os cadernos pedagógicos, quanto as aulas da Educopedia foram elaborados por professores da rede, mas sabe-se que a participação deles é bastante limitada por rígidos padrões impostos pela própria SME.
O resultado foi uma chuva de reclamações feitas pelos professores, insatisfeitos tanto com a qualidade dos materiais, quanto com sua inadequação à realidade vivida em sala de aula. Aqui já se percebe o primeiro ataque da gestão Paes/Costin à autonomia pedagógica e o início da responsabilização dos professores pela falência da educação pública. Ao determinar a utilização de aulas e de apostilas pré-fabricadas, a SME, além de desmoralizar os professores – como se eles não fossem capazes de preparar suas aulas – retira deles a autonomia de escolher e organizar os conteúdos e sua abordagem, como se os problemas de baixo rendimento dos alunos fossem culpa deles. Isso sem contar com o dinheiro desperdiçado na impressão das apostilas e das provas e na manutenção da plataforma de aulas digitais
Em 2010, Costin começou a implementar diversos projetos elaborados por instituições privadas (como o Instituto Ayrton Senna, a Fundação Roberto Marinho, dentre outras), com o intuito de acelerar a aprendizagem dos alunos da rede. A coisa passou a funcionar da seguinte maneira: retiram-se do ciclo regular os alunos que apresentam algum tipo de dificuldade de aprendizagem, de defasagem idade/série ou baixo rendimento em testes diagnósticos, para inseri-los em projetos de realfabetização ou de aceleração da formação escolar. As turmas desses projetos são regidas por um professor polivalente, que, com a ajuda de um material pedagógico elaborado pela instituição que produziu o projeto, ministra aulas de todas as disciplinas, depois de passar por um breve curso de capacitação.
Dessa forma, a SME consegue, de uma só vez, evitar que esses alunos com dificuldades comprometam a geração de índices positivos de aprovação ou de boas notas nas avaliações externas (já que as turmas de projeto não reprovam e não são avaliadas pelos testes que, pretensamente, medem a qualidade do ensino público); mascarar a falta de professores na rede (pois apenas um professor passa a dar aula de todos os conteúdos); permitir o repasse de verbas públicas para instituições privadas (uma vez que os projetos pedagógicos, bem como seus materiais e os cursos de capacitação de professores são comprados pela prefeitura).
Para completar, Costin estabeleceu metas que devem ser atingidas pelas escolas para que seus profissionais recebam uma premiação em dinheiro. Essas metas se referem à melhoria nas notas das escolas em avaliações externas como o IDEB (do governo federal). Criou-se, até o IDE-Rio, para estimular a concorrência entre as escolas da própria rede. Entretanto, ao invés de investir diretamente na melhoria das condições estruturais das escolas, na compra de materiais e na valorização profissional, Costin aprofundou a lógica da sua gestão, fundando escolas-modelo, que passaram a receber projetos de ponta, como as Escolas do Amanhã (localizadas em áreas conflagradas), o Ginásio Experimental Carioca (GEC) – e seus derivados, como o GE Olímpico e o GE das Artes – e, mais recentemente, o GENTE (Ginásio Experimental de Novas Tecnologias em Educação).
Todas as escolas que receberam tais projetos passaram por reformas estruturais, foram equipadas com acessórios tecnológicos, passaram a funcionar em turno integral e a contar com uma ampla equipe de profissionais necessários à vida escolar. Para isso, a SME removeu à força os profissionais que não concordaram com a reestruturação dessas escolas, pois, para que isso fosse possível, era necessário que os professores com um regime de trabalho de 16 horas semanais aceitassem dobrar sua carga horária, fazendo horas extras. A proposta pedagógica dessas escolas se baseia na total falta de autonomia dos professores, que atuam como tutores polivalentes, utilizando os cadernos pedagógicos e as aulas da Educopedia. Além disso, a reestruturação dessas escolas foi mais uma brecha para que as instituições privadas passassem a lucrar com a educação pública, a partir do apoio logístico (com obras, fornecimento de equipamentos tecnológicos e pedagógicos) e/ou profissional (terceirizações, oficineiros etc). Com tantos cuidados, essas escolas, em geral, acabam atingindo as metas de produtividade determinadas pela SME, até porque, nessas escolas, a própria prática pedagógica se norteia para isso.
Enquanto os recursos materiais e humanos (via privatização) se concentram nas escolas-modelo, as outras escolas da rede enfrentam inúmeros problemas em seu cotidiano. Mas a prática de medir a qualidade do ensino por meio de avaliações externas padronizadas (como IDEB e IDERio) não leva em consideração a realidade vivida em cada escola. Assim, todas são avaliadas da mesma forma, embora possuam condições bem diferentes. Isso também reproduz a desigualdade entre as escolas, pois aquelas que são bem avaliadas são recompensadas, enquanto que as mal avaliadas sofrem punições e correm o risco de serem fechadas.
Ora, enquanto Costin consolidava a política de bonificação salarial por metas de produtividade, o prefeito Eduardo Paes manteve em níveis muito baixos os salários dos profissionais da educação, oferecendo como reajuste apenas a reposição da inflação (ou seja, sem ganhos reais), sem avançar na negociação do Plano de Carreiras por tempo de serviço e formação – que poderia garantir a permanência dos professores na rede e que poderia servir de incentivo à qualificação profissional. Isso significa que, para os educadores, a única maneira de melhorar seus salários passou a ser o cumprimento das metas de produtividade impostas pela SME. A partir daí, o individualismo, o isolamento e a responsabilização de colegas pelo fracasso nas avaliações externas passaram a reinar dentro das escolas. Sem condições minimamente dignas de trabalho e sem valorização profissional, fica muito difícil atingir essas metas. Por conta disso, muitas escolas passaram a burlar esse sistema, mascarando as variáveis que compõem o índice de desempenho da escola. As direções das escolas começaram a pressionar os professores pela aprovação dos alunos, para não aumentar o índice de reprovações e as aulas tornaram-se meros cursos de treinamento para a resolução das questões das provas externas (cujos resultados também passaram a ser mascarados, já que as próprias escolas ficaram responsáveis pela aplicação das provas). Assim, além de não investir na melhoria das escolas e na valorização profissional, a gestão Paes/Costin abriu as portas para que as instituições privadas passassem a lucrar com a educação pública.
Como eu disse, as consequências desse modelo foram expostas no livro de Diane Ravitch, onde ela mostra que o nível de aprendizagem dos alunos não melhorou, porque eles foram apenas treinados para resolver provas, por professores preocupados em atingir as metas de produtividade, para ganharem a bonificação salarial. Os alunos, na falta de estímulos e ao perceberem o baixo nível de exigência para que fossem aprovados, acabaram relaxando em relação aos estudos, o que significa que a aprovação automática continua funcionando, de maneira velada. Fica evidente, portanto, que esse modelo beneficia somente às instituições privadas parceiras do governo municipal e à gestão Paes/Costin, que gerou para si números positivos na área de educação. Mas só aqueles que estão realmente presentes no dia a dia das escolas municipais sabem que as escolas públicas passam por mais um grave processo de precarização.
A aplicação de uma lógica gerencial (meritocrática e produtivista) não vai resolver o problema da educação pública, porque seu principal objetivo é a conquista do maior retorno possível com o menor custo possível, no menor tempo possível – ou seja, a mesma lógica que se aplica à geração de lucro. Essa lógica é incompatível com os objetivos da educação pública, pois o processo de ensino/aprendizagem envolve questões sociais, culturais, familiares, econômicas e afetivas complexas e muito diversas, que não se resolvem com o simples estabelecimento/cumprimento de metas em avaliações padronizadas.
Portanto, não podemos jogar a culpa pela situação caótica em que se encontra a educação pública nas costas dos educadores, como se eles fossem incapazes ou como se fizessem corpo mole. Ainda que existam problemas na formação de alguns professores e ainda que alguns profissionais não se dediquem como deveriam as suas tarefas, isso não significa que todos os outros (que são a maioria) devam ser punidos com baixos salários e condições de trabalho ruins, pelos problemas causados por outros. Mesmo que a culpa pudesse ser imputada a esses professores, isso poderia ser resolvido com a criação de mecanismos democráticos de avaliação continuada dos profissionais, que funcionassem efetivamente e que oferecessem, ainda, a oportunidade de reciclagem para aqueles que apresentassem algum tipo de dificuldade.
Mas nada disso seria necessário, caso os governos municipais aplicassem, sem manobras fiscais, os 25% do orçamento municipal, optando por investir diretamente (ou seja, sem instituições intermediárias) na melhoria das estruturas físicas das escolas e na valorização profissional. Além disso, seria necessário que a filosofia pedagógica da rede fosse pensada por educadores e pela comunidade escolar, para que tivesse uma perspectiva de funcionar no longo prazo, passando por reavaliações e adaptações ao surgimento de novos desafios.
Capitalismo em desencanto
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