terça-feira, 23 de abril de 2013

Diálogo entre um professor e um Diário de Classe


Era início de ano letivo em um colégio público e o professor acabara de chegar na escola. Dirigiu-se à secretaria e foi informado que os Diários de Classe já estavam prontos. Era quase um milagre, pois os mesmos quase sempre eram entregues com dois meses de atraso.

Eis que quando pegou o diário, o mesmo dirigiu-se a ele e disse: “Oi, tudo bem?” 

Assustado com o fato de um Diário falar, o professor respondeu: “Como pode estar tudo bem se no primeiro dia de aula eu já te encontro?”. 

O Diário de Classe riu e disse: “Hoje eu sou a coisa mais importante da educação”. 

“Eu sei”, respondeu o professor. “É por isso que a educação está no nível que está”, completou. 

O Diário se enfezou e retrucou: “Olha aqui, se não fosse por mim, milhares de burocratas de colégios não teriam emprego. É graças a minha existência que essas pessoas estão nas escolas. Elas acham que eu sou a coisa mais importante do processo de ensino-aprendizagem. ”.
O professor, tristonho, teve que concordar. Ele tinha feito graduação, mestrado e pensava em entrar para o doutorado. Investiu em sua formação profissional por sete anos, tinha muito conhecimento para passar, mas o mais importante no colégio não era isso, e sim um mero Diário de Classe, peça de uma burocracia idiota que existia desde o século XVIII.

“Trate de me preencher corretamente, viu!”, disse o Diário com deboche. 

“Eu sei, eu sei”, respondeu ainda mais cabisbaixo o professor. “Nada do que tento passar para os alunos importa. O que importa é que você esteja preenchido sem erros e sem rasuras”, completou o mestre desanimado. 

O Diário olhou altaneiro e disse: “Você estudou tanto e ganha essa ninharia? Você estudou tanto e é controlado por gente que nem na sala de aula entra? Tenho pena de você”. 

O professor se irritou e disse: “E você nada mais é do que um mero instrumento de controle. Você é o único argumento para a existência de tanta gente medíocre no meio da educação. Não tem vergonha de exercer esse papel?”, perguntou o professor. 

“Não”, disse cinicamente o Diário. “Minha super valorização é a prova da decadência do ensino ao qual você tanto se dedicou. Minha valorização é a imagem do despreparo dessa gente que exerce o poder nas escolas. Sou um instrumento de poder e da politicagem reinante. Logo, sou muito importante, enquanto você é apenas um duro, um rebelde, uma peça aleatória daquilo que eles chamam educação”.
O professor baixou a guarda de vez. Aquelas palavras duras eram a mais crua realidade. Mas ainda tentou uma última reação e disse: “Olha aqui, sou o responsável pela formação de muita gente”. 

O Diário não se conteve e caiu na gargalhada, respondendo: “Mestre, você tem que aprovar quem não sabe a matéria porque os diretores de escolas, os pedagogos e os secretários de educação querem bons índices de aprovação na administração deles, mesmo que os alunos não saibam ao menos ler, escrever ou contar. Te forçam a aprovar alunos que não querem estudar para continuarem ganhando gratificações, permanecerem fora das salas de aula e amanhã, quem sabe, se candidatarem. E ainda te culpam pela ignorância desses mesmos alunos que você quer reprovar. Você não forma mais ninguém. Educação para esse povo é Diário bem preenchido, prédios novos e atividades lúdicas imbecis. Escola não é mais lugar de saber, mas de medíocres que querem se manter nas suas posições de poder maquiando dados estatísticos e defendendo premissas pedagógicas absurdas. Não é a toa que a média do Enem é cada vez menor, já estando em 3,4”.

Arrasado, derrotado por aquelas palavras cruéis mas reais, o professor entrou na sala e deu a última aula de sua vida. Quando o sinal tocou, saiu, jogou o Diário no lixo, o que era a pior vingança que ele podia fazer contra aquela gente, e foi embora. Mudou de profissão e, na semana seguinte, estava com uma barraca em uma praça, muito mais feliz, ganhando o dobro e dizendo: “Não trabalho para essa gente. Prefiro vender churrasquinho a colaborar para o afundamento da educação do meu país”.

No ano seguinte, pelos mesmos motivos, outros dez mil professores haviam abandonado aquela rede de ensino.

Busto do Professor Chicão foi feito em bronze e será colocado na praça Porto Rocha, em frente ao café Parada Obrigatória.

Professor Dr. José Francisco de Moura
(Vulgo Chicão "Busto de Bronze")

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