Aprovação da Lei Agrícola americana renovou os subsídios ilegais e colocou o Brasil novamente na condição de implementar a sanção |
Em 2009, o governo brasileiro ganhou a disputa num painel da Organização Mundial de Comércio (OMC) sobre a legalidade dos subsídios que os Estados Unidos ofereciam aos seus produtores de algodão. Para compensar o prejuízo brasileiro, a OMC autorizou uma retaliação comercial de 869 milhões de dólares, que poderia ser distribuída entre produtos e serviços (somando 561 milhões) e retaliação cruzada em propriedade intelectual (somando os 268 milhões restantes).
A retaliação cruzada é um mecanismo que permite que se puna com o não pagamento de royalties de propriedade intelectual prejuízos causados no comércio de produtos e serviços. Trata-se de um mecanismo que busca penalizar em situações assimétricas onde a elevação de tarifas de produtos, muitas vezes essenciais, prejudica mais o país que está impondo as sanções do que aquele que as recebe. Embora autorizado duas vezes pela OMC (favorecendo Antigua e Equador), o mecanismo nunca foi posto em prática, porque embora amparado pelas leis do comércio internacional, os Estados Unidos e os países europeus pressionaram para que ele não fosse aplicado.
Quando o Brasil estava prestes a aplicar a retaliação em 2009-2010, os Estados Unidos recuaram e propuseram uma série de medidas compensatórias. No entanto, a recente aprovação da Lei Agrícola americana renovou os subsídios ilegais e colocou o Brasil novamente na condição de implementar a sanção.
O governo brasileiro tem a oportunidade de quebrar esse tabu que é a inimputabilidade americana no comércio internacional. O Brasil pode fazê-lo porque tem dimensão econômica e estatura política. Tem, por isso mesmo, a responsabilidade de fazê-lo de maneira eficaz e inteligente, de maneira a mostrar que descumprimentos das regras do comércio internacional pelos Estados Unidos podem ser sancionados. Se conseguir implementar a retaliação cruzada, o Brasil abrirá um importante precedente que poderá ser explorado por países menores. Por isso é preciso que a retaliação seja muito bem pensada e executada.
Em primeiro lugar, para que a retaliação cruzada tenha efeito político dentro dos Estados Unidos, é preciso que seja uma medida de impacto que cause dano econômico a um setor economicamente relevante, de maneira que esse setor afetado pressione o governo americano. Uma medida como o licenciamento compulsório de um filme blockbuster para exibição nas emissoras públicas brasileiras, tal como foi discutido em 2010, pode ter esse efeito.
No entanto, a autorização para essa retaliação é uma espécie de crédito que o Brasil detém no comércio bilateral e, por isso, deve ser exercido de acordo com os princípios das políticas públicas. Não faz sentido, retaliar os Estados Unidos com a suspensão do pagamento de royalties de produtos da cultura comercial, consumindo esse crédito com produtos cuja democratização não é objetivo da política pública. Os primeiros candidatos de interesse público em matéria de propriedade intelectual são os medicamentos. Mas há também outros candidatos nas esferas das políticas relacionadas a ciência, educação e cultura. Abaixo segue uma pequena lista de sugestões para o governo brasileiro implementar a retaliação cruzada, distribuindo os recursos em políticas de fácil implementação e grande impacto social:
* Assinaturas de periódicos científicos – O setor de periódicos científicos é um bom candidato para a retaliação cruzada porque reúne simultaneamente relevância econômica e interesse público. Só o consórcio liderado pelo governo federal gasta mais de 60 milhões de dólares anuais com assinaturas de revistas científicas, boa parte delas de editores nos Estados Unidos (inclusive, a gigante Thomson Reuters). No que diz respeito a demanda, o mercado é concentrado em dois grandes consórcios de universidades, o que facilitaria a implementação da medida.
* Dicionários inglês-português – Aplicar a retaliação no setor de livros é uma operação um pouco complexa, devido ao problema da língua. Como as traduções também têm direito autoral (normalmente de titularidade nacional), não é possível reimprimir livros americanos já traduzidos por meio de licenciamento compulsório. Por outro lado, imprimir livros americanos sem tradução atinge um público muito reduzido. Uma opção a ser explorada é a impressão e distribuição de dicionários inglês-português por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). O Ministério da Educação poderia imprimir o livro e distribuí-lo junto com os demais livros do PNLD. Esses dicionários poderiam apoiar o ensino de inglês, constituindo uma valiosa adição aos programas de distribuição de livros didáticos que, até hoje, distribuíram apenas dicionários de português.
* Distribuição de uma seleção criteriosa de produtos culturais americanos – No campo das políticas culturais, uma possibilidade a ser explorada seria a produção massiva de caixas com álbuns musicais ou filmes clássicos, selecionados por especialistas, para a distribuição em centros culturais, bibliotecas, escolas e universidades. O governo federal (Ministério da Cultura) poderia assumir os custos da produção industrial e, como no caso dos livros e das assinaturas de periódicos, os valores referentes aos royalties seriam abatidos do crédito brasileiro.
Todas as três medidas têm o mérito de serem simples e facilmente mensuráveis, já que existe um custo de licenciamento estabelecido para esses produtos. Medidas como essas atingiriam atores econômicos relevantes, causando incômodo político para os Estados Unidos, obtendo o duplo resultado de punir e forçar o país a cumprir as regras da OMC. Além disso, poderiam ter impacto positivo no desenvolvimento de políticas brasileiras nas áreas da ciência, educação e cultura.
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