A diretora Leila Soares mostra a foto com as marcas que os socos deixaram em seu rosto |
De um lado, a evocação da autoridade; do outro, a afirmação pessoal, típica de quem está caminhando para a idade adulta e vive numa favela dominada pelo tráfico. O ringue: a Escola Municipal João Kopke, de educação fundamental, em Piedade, a cerca de 300 metros do Morro do Urubu. No colégio, frequentado metade por alunos do asfalto e metade pelos da favela, nunca havia ocorrido um caso de agressão grave. Até o último dia 21, quando a diretora do colégio, Leila Soares, de 43 anos, foi atacada a socos por um aluno de 15 anos. Ele contou e diz que foram oito golpes.
Leila só sabe que foram vários. A professora quer uma punição exemplar. O estudante acha que um pedido de desculpas já seria o suficiente. Cada um conta a sua versão.
As marcas dos socos no rosto da pedagoga, há quatro anos à frente da João Kopke, já desapareceram, mas a imagem do agressor partindo em sua direção continua bem nítida em sua mente. Ela sente fortes dores de cabeça e não escuta com o ouvido direito. Em seu apartamento, numa rua de classe média do subúrbio, Leila tenta se recuperar do trauma e manter as aparências na hora da lição de casa dos dois filhos, de 6 e 12 anos. Ela vem de uma família cuja tradição é a vocação pelo magistério. Foi normalista do Carmela Dutra, colégio de Madureira voltado para a formação de professores. Rígida, diz que tem como principal virtude ouvir e que costuma pedir para não ser interrompida quando conversa um assunto sério com um aluno ou responsável.
Perto da escola, numa construção tosca de alvenaria, no alto do Morro do Urubu, já no bairro de Pilares, onde o esgoto desce pelas vielas, provocando um mau cheiro insuportável que entra pela única janela do imóvel, mora o adolescente de 15 anos que socou Leila. A casa fica ao lado de uma outra fincada na pedra que ameaça desabar a qualquer chuva mais forte. Dentro dela, nenhuma TV funciona com todas as funções: de uma, só se aproveita a imagem; de outra, o som. O jeito é ligar as duas ao mesmo tempo.
O DVD player é emprestado, e o celular velho não tem chip. A geladeira, enferrujada, com a porta despencada, serve de armário: há alguns dias, um quilo da sardinha, xepa da feira local, estragou por falta de refrigeração. O cômodo da casa onde mora a família, que faz as vezes de quarto e sala, tem cerca de 12 metros quadrados. Há dias o prato principal tem salsicha e ovo, comprados com os R$ 134 do Bolsa Família.
Nesse cenário, não há espaço para o diálogo, apenas para brigas e sessões de espancamento, reconhece a paraibana de Campina Grande, de 38 anos, mãe do jovem agressor. Ela se diz vítima do marido, mas não tem coragem de denunciá-lo à polícia, pois o morro é ocupado pelo tráfico. O socorro vem do próprio adolescente que bateu na professora, o segundo dos três filhos da mulher, considerado o mais calmo da família. É ele quem suplica ao pai que pare de bater na mãe, pois “numa mulher nunca se bate”.
No dia 21, o adolescente, que faz o 7º ano do ensino fundamental, no programa de aceleração escolar, não seguiu à risca seu próprio pensamento.
— O sangue subiu, e eu agredi a diretora. Ela está falando que escorreu sangue, mas eu não vi nada — diz ele, apoiado pela mãe, segundo a qual a professora ficou com a “cara perfeita” (sem machucados).
“Me chamou de demônio. Eu explodi”
Foi quando subia a escada da escola que leva ao pátio que a diretora se deparou com o estudante. Com uma chave de braço, ele estava atracado com um vizinho, seu melhor amigo. Não era briga, apenas um jeito meio bruto de demonstrar afeto. A partir daí, as versões divergem. O estudante alega que esbarrou na diretora; ela diz que foi empurrada.
— A gente tem a mania de andar agarrado. Aí ela disse: “Não quero agarramento”. Desci um degrau e esbarrei nela. Estressada, ela me empurrou, foi comigo na secretaria, falando alto. Não gostei. Ela chegou perto de mim e me chamou de alguns nomes. Me mandou para o inferno e me chamou de demônio. Eu explodi.
Leila diz que os fatos foram outros:
— Não me lembro de tê-lo chamado de demônio. Acho que ele é mau. Enquanto não me bateu, não sossegou. A missão dele naquele dia era dar soco em alguém. Fui eu a vítima. Tanto é que ele foi tranquilamente para o pátio contar o feito para os amigos. Não acredito que ele estivesse surtado ou drogado. Chamei a ronda escolar, e ele foi conduzido pela Guarda Municipal.
O que teria enfurecido o adolescente, que estuda lá desde 2011, foi ser chamado de demônio. É assim que a mãe dele se refere ao pai, pedreiro desemprego, que tem problemas “nos nervos” e toma remédios com tarja preta diariamente. Depois que o filho foi levado para a 24ª DP (Piedade) para se explicar, a mãe teria pegado alguns comprimidos do marido para se acalmar.
Com 23 anos de magistério no município, Leila, que já atuou como professora, coordenadora pedagógica e gerente de uma Coordenadoria Regional de Educação, enfrentou situações delicadas em outras escolas. Numa ocasião, precisou chamar a atenção de uma aluno que ameaçara uma funcionária:
— O aluno disse à merendeira: “Cuidado que você pode acordar com a boca cheia de formiga”. Aí eu o chamei e falei: “Você sabe rezar? Então reza para não cair sequer um cisco no olho dela, porque, se isso acontecer, vai cair na sua conta”. Ele alegou que era brincadeira.
Numa escola do Complexo do Alemão, Leila teve que se deitar no chão por causa de um tiroteio na comunidade. Era comum, às segundas-feiras, antes das UPPs na região, as professoras recolherem uma sacola com projéteis que caíam dentro do colégio.
Na João Kopke desde 2009, Leila orgulha-se de ter mudado o ambiente da escola, o que fez com que o colégio, de 300 alunos, pulasse para 700.
— Conheço cada aluno pelo nome e, quando percebo tentativa de abuso, falo: “Eu jogo bola com você na Paquequer (rua da região)? Então não sou sua colega”. Eles precisam saber seus limites.
Dessa forma, a diretora não se conforma com o fato de o jovem não ter ido à Vara da Infância e Adolescência até o dia 22, como estava marcado:
— Eu gostaria que ele cumprisse uma medida socioeducativa. A mãe acha que é simples ele ter socado alguém.
Sem dinheiro para o ônibus, a mãe do adolescente conta que não pôde levar o filho, que não tem o nome do pai registrado na certidão de nascimento.
— Vou segunda-feira (amanhã). Se não conseguir o dinheiro da passagem, vou ter que pedir ao tráfico — diz ela.
O jovem nega ter rido da diretora, como ela alega. E completa:
— Estou até arrependido porque agredi a diretora, uma mulher. Não gosto de fazer isso. Mas daí a falarem que eu vou entrar para a vida do crime... Isso nunca vai acontecer — garantiu ele, embora tenha ficado mais conhecido no Morro do Urubu, ganhando a simpatia dos traficantes por ter enfrentado a diretora.
O Globo