País mudo não muda
As
manifestações que tomaram as ruas das cidades brasileiras mexem com as
categorias tradicionais de análise. Tudo o que se elabore a respeito
será insuficiente, pré-texto que é também pretexto para justificar o não
entendimento completo desse contexto singular. A régua usada para medir
movimentos anteriores não é adequada para avaliar os atuais, que “não
têm CNPJ”. Uma boa embocadura é fazer considerações a partir do que
diziam alguns cartazes que os milhares de manifestantes, na sua maioria
jovens, portavam: “O gigante acordou”?
A história brasileira registra manifestações massivas e explosivas de
caráter urbano. Em 1890, ainda no II Reinado, o Rio de Janeiro agitou-se
por dias seguidos, em reação da população contra o aumento de 20 réis
na passagem dos bondes. Portanto, tanto o ‘gigante’ já acordou antes quanto é possível que volte, agora, a adormecer
– sedado pela inorganicidade dos protestos e pela sua extrema
diversidade, reflexo de uma sociedade que, historicamente, tem mais estadania do que cidadania.
Que os conservadores não se sintam aliviados, porém: seu sono será leve, assombrando com a possibilidade de acordar a qualquer momento.
Há setores sociais novos, apelidados de ‘classe C’, que parecem ter
chegado ao limite de sua estimulada capacidade de consumo. Agora,
engarrafados nas ‘carrocracias’ urbanas, no sufoco da especulação que
aumentou violentamente os preços dos aluguéis e dos imóveis, sem planos
privados de saúde e possibilidades de pagar escolas particulares, clamam
por serviços públicos de qualidade.
“Não é por centavos, é por direitos”.
A questão das tarifas foi a faísca que
incendiou uma planície de insatisfações até então conformadas. A
repressão policial adicionou combustível e demandas reprimidas de
diversos setores provocaram o incandescente protesto “contra tudo o que
aí está”. A irritação cotidiana com a péssima mobilidade urbana do país –
segundo o IBGE, apenas 3,8% dos nossos 5.567 municípios têm Plano
Diretor de Transportes, embora 74% deles possuam estrutura
administrativa/burocrática para o setor – criou caldo de cultura que
engrossou os protestos. Mais que em busca de negociação, os atos eram de
rebeldia: não demandavam das autoridades que as recebessem nem
constituíam comissão representativa para este ‘diálogo’. É como se a
multidão clamasse: ‘quem quiser nos ouvir, que ouça!’. As manifestações
multitudinárias de junho estão tendo um efeito-demonstração: de lá para
cá, milhares de pequenos movimentos reivindicatórios eclodiram ou se
reanimaram.
“Queremos escolas e hospitais padrão Fifa”.
Estádios suntuosos foram reformados ou
construídos pelo consórcio negocista Fifa-Governo Brasileiro-Parlamento
– que aprovou a Lei Geral da Copa e o Regime Diferenciado de
Contratações de Obras Públicas, dando arcabouço jurídico ao
empreendimento. As arenas faraônicas cumpriram papel pedagógico, ao
demonstrar que recursos existem, que prazos podem ser cumpridos... e a
falta de critérios no uso do dinheiro público, que não chega para
escolas e hospitais. O “padrão Fifa” que se reclama, por óbvio, não é o
da gestão da entidade, com tantas denúncias de corrupção.
“Fora todos os governos”.
A tônica personalista da política vigente levou a uma
contradição: há 3 meses, a aprovação ao desempenho dos governantes – no
plano federal e estadual – já contrastava com a avaliação das políticas
públicas de saúde, educação, segurança, moradia e trânsito, de tendência
claramente negativa. Nas ruas, o repúdio era contra os partidos, pois,
no senso comum, nenhum presta. Pesquisa recente revela que 81% dos
consultados os consideram corruptos, sem exceção. E também contra a
péssima qualidade dos serviços públicos e contra os meios de comunicação
de massa, com seu noticiário interessado. Tudo foi posto em questão por
uma geração que não conheceu o PT contestador e sim o do poder. Que não
viveu qualquer polarização política, mas sim o avassalador processo de
‘peemedebização’ e despolitização da política, com sua devassidão ética,
azeitada máquina de captar votos e voracidade de ocupação de espaços.
“Não adianta rugir como um leão e votar como um jumento!”.
Aqui há uma mediação com a
democracia representativa tradicional, chamando a atenção do próprio
cidadão eleitor: ele também é responsável pela degradação do sistema
político, ao não dar um voto consciente nem acompanhar a vida pública.
Os muito interessados na política de negócios prevalecente são
alimentados pelos muitos “analfabetos políticos”, pouco interessados
nessa dimensão essencial da existência. O sistema partidário-eleitoral
em vigor, fulanizador, excludente, marqueteiro e fisiológico, favorece a
captação de sufrágio e a eleição de pessoas sem o menor espírito
público, a despeito das leis que criminalizam a captação de sufrágio e
tornam inelegíveis os ‘fichas-sujas’.
“Saí do Facebook!”
A maior novidade é a articulação em rede saindo da telinha para a vida
real: ‘o post nos libertará!’. Nunca na história desse país houve
tamanho “enxameamento viral”, de uma certa forma mais ‘social’ que
‘político’, e que tende a ser não contínuo e crescente, mas
intermitente, como um ‘foco guerrilheiro pós-moderno’ que surpreende o
poder com ações ousadas, exemplares, e depois recua – sem sequer saber
da existência do manual do velho Che e das estratégias do general
Giap...
As manifestações revelavam um desejo difuso de participação, de
cada um ser ator de sua história – de certa forma, cada um sendo sua
própria manifestação. No contexto ideológico do hiperindividualismo
capitalista em que vivemos, muitos, inteiramente à margem de partidos,
sindicatos, grêmios e associações, levaram demandas a partir de sua
percepção pessoal, coletivizando-as em sua debutância militante,
colocando-as na cena pública.
“Penso, logo não assisto”.
As redes sociais confrontaram as redes empresariais e
seus grupos restritos, monopolistas. A mídia direta polarizou com a
mídia tradicional, embora venham desta – especializada, por dever de
ofício – a maioria das intensas e diversas informações que circulam nas
redes. Inegável que a internet promove uma democratização dos meios de
comunicação, abalando a força indutora da mídia grande, questionadíssima
em todas as manifestações.
Não por acaso está montada uma rede de
espionagem, a partir dos EUA, para o controle destas informações, além
de, em alguns países, a internet ser rigorosamente controlada e
restrita. Nas passeatas, a cobertura das TVs foi hostilizada a ponto de
seus repórteres terem que ir sem a canopla dos microfones com as
logomarcas de suas empresas. Tão questionada como os partidos, a mídia
grande comercial, por óbvio, pouco destacou esse aspecto dos protestos.
Mesmo os jornais impressos, muitos pertencentes à mesma rede de
comunicação, não noticiaram essa forte contestação. Fundamentalismos
religiosos também foram fustigados.
“Quem luta, conquista”.
Revelando a força da pressão direta da praça sobre os
palácios – antiga proclamação das esquerdas -, as manifestações já
produziram resultados concretos, tanto em ações do Poder Executivo
(redução de tarifa para 70% da população de cidades grandes e médias e
anúncio de projetos para melhorar a mobilidade urbana), do Legislativo
(acelerando-se a aprovação de matérias que tramitavam em passo lento) e
mesmo do Judiciário (prisão de um deputado ladrão). As diferentes tribos
sem tribunos, ocupando os espaços centrais das cidades, constituíram
uma original e multifacetada tribuna popular. Disse, sem dizer, que
democracia é mais que votar. A antiga cultura participativa da qual
emergiu o PT negou o ‘mestre’ hoje acomodado.
Quem tem a obrigação de
decodificar e formular políticas públicas a partir das demandas
necessariamente difusas – e, aqui e ali, confusas – são os agentes
políticos que se assumem como tais ou estão mandatados para tanto. A
cidadania aponta os problemas, com a autenticidade de quem os sofre na
carne e na alma. Resolvê-los é tarefa dos que são pagos por ela para
esse serviço, que é político e técnico. Desafio grande para quem andava
tão blindado contra as massas, só consideradas como de manobra nos anos
eleitorais.
“País mudo não muda”.
Só o prosseguimento das manifestações tirará da inércia os
paquidérmicos Poderes da República. Ao contrário de alguns outros
movimentos, no Brasil e no mundo, não há aqui, até o momento, formulação
de tomada de Poder, e sim seu questionamento radical. Semelhante ao
‘Ocupa Wall Street’, aqui se enfatiza mais o que não se quer do
que o que se quer.
A ocupação dos espaços públicos por multidões
manifestantes – multiclassistas, destaque-se – questiona a lógica do
poder que passa pelo controle do território, proclamado como ‘dever de
manutenção da ordem’. Reivindicantes/protestantes presentes e visíveis
alteram a natureza da tradicional ‘impotência’ das massas frente ao
poder estabelecido. Esse autoempoderamento abre a possibilidade
estimulante de se estar fazendo história. Para Manuel Castells,
sociólogo estudioso da sociedade em redes, “é o caos criativo. Anormal
seriam legiões em ordem, organizadas por uma única bandeira e lideradas
por burocratas partidários. O espaço público reúne a sociedade em sua
diversidade: a direita, a esquerda, os malucos, os sonhadores, os
realistas, os ativistas, os piadistas, os revoltados...”
“Sem partido!”
A
este reiterado brado, a reação foi a afirmação, correta, de que sem
partidos não há democracia. É imprescindível entender, porém, que os
partidos não são mais a única forma de representação da sociedade, e
andam cada vez mais dissociados de suas vontades, seja por seu controle
caciquista (prática dos da direita), seja por suas autofagias e
baluartismos (costumeiros nos de esquerda). Aliás, os grandes partidos
brasileiros – que sofrem de ‘nanismo moral’ – e os ditos ‘nanicos’,
legendas de aluguel, também não querem aprofundar a democracia, com mais
mecanismos de transparência e participação direta da população.
Não
seria exagero dizer que com esses partidos não há democracia! É
verdade, por outro lado, que o vazio ideológico e a progressão, nos
tempos atuais, da distopia, produzem ‘rebeliões do efêmero’, com uma
espécie de solidariedade pós-moderna eventual, com o compartilhamento de
reivindicações particularistas. Jovens representantes da Federação
Anarquista, por outro lado, costumam lembrar a bela consigna “povo forte
não precisa de líderes”.
Frase de Emiliano Zapata, principal líder da
Revolução Mexicana do início do século passado... “Podemos ser qualquer
pessoa, as pessoas se apropriam das suas próprias lutas, não precisam
ficar esperando alguém dizer o que fazer”, disse Mayara Vivian, que é da
coordenação do organizado Movimento Passe Livre de São Paulo. Alguma
forma de organização e liderança, ainda que mutante e rotativa, é
necessária.
“Vândalo é o Estado”.
A sociedade de massas e as grandes metrópoles estimulam mentalidades
competitivas e comportamentos de forte tom agressivo, como se vê
diariamente nas discussões de trânsito. A tensão urbana explode com
frequência, sem controle racional possível.
É fato que as manifestações,
quase sem exceção, possuíam uma ‘cauda envenenada’ que reunia desde
jovens no limiar da marginalização – no Brasil, cerca de 24 milhões
entre 15 e 25 anos estão fora da escola e do mundo do trabalho – até os
ditos mais politizados, defensores da ‘ação direta e violenta contra os
símbolos do estado’, entre eles anarcopunks e ‘blacks blocs’. Chegavam
encapuzados e com artefatos explosivos de fabricação caseira em
manifestações pacíficas que clamavam por transparência. Sua disposição
era de brigar com a polícia. Esta, despreparada e militarizada, vendo em
todos o arcaico “inimigo interno” dos tempos da Guerra Fria, vinha
disposta a, sendo fustigada, atacar tudo e todos, sem critério e
economia de bombas, gases, cassetetes.
A repressão inaudita das PMs foi,
sem dúvida, um fator de crescimento das mobilizações, como protesto
contra a violência estatal. E o vandalismo do abandono de equipamentos
públicos, sobretudo nas periferias, e da subtração de recursos, que a
corrupção estrutural realiza, foram constante e corretamente
denunciados.
“Se vocês não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir”.
A propósito, Slavoj Zizek, em visita ao Occupy Wall Street (Liberty Plaza, Nova York), em 2011, alertava: “Não
se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos
tendo aqui. (...) O verdadeiro teste do seu valor é o que permanece no
dia seguinte, ou a maneira como nossa vida cotidiana será modificada.
Apaixonem-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim.
(...) Há um caminho longo pela frente, e em pouco tempo teremos de
enfrentar questões realmente difíceis, questões não sobre aquilo que não
queremos, mas sobre aquilo que queremos.(...) Qual organização pode
substituir o capitalismo vigente? Que tipos de líderes nós precisamos?
As alternativas do século XX obviamente não servem. (...) O problema
maior não é a corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos incita a
ser corruptos. (...) Da mesma maneira que compramos café sem cafeína,
cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, tentarão transformar isso aqui
em um protesto moral inofensivo.
Mas a razão de estarmos reunidos é o
fato de já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de
Coca-Cola, dar alguns dólares para entidades caritativas ou comprar
cappuccino da Starbucks, que reverte 1% da renda para os pobres do
Terceiro Mundo, seria suficiente para nos sentirmos bem. Depois de
terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a tortura, depois que as
agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos encontros é que
percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nosso engajamento
político seja terceirizado – mas agora nós o queremos de volta! (...)
Quando fundamentalistas conservadores nos disserem que os EUA são uma
nação cristã, lembremo-nos do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a
comunidade livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor.
Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos! Dirão
que somos violentos, que nossa linguagem é violenta, referindo-se à
ocupação. Sim, somos violentos no sentido em que Mahatma Gandhi o foi.
Somos violentos porque queremos dar um basta no modo como as coisas
andam. Mas o que significa essa violência simbólica quando comparada à
violência necessária para sustentar o funcionamento do sistema
capitalista global? Em breve seremos chamados de perdedores. Mas os
verdadeiros perdedores não são os que se safaram com a ajuda de centenas
de bilhões do nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas
nos EUA já existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que vocês não
respeitam a propriedade privada, mas as especulações financeiras e
imobiliárias que levaram à queda de 2008 extinguiram mais propriedades
privadas obtidas a duras penas – pense nas moradias hipotecadas – do que
se estivéssemos as destruindo agora, dia e noite.”
“Não tenho hospitais, não tenho escolas, não tenho transporte... E não tenho mais paciência também!”.
No Brasil, a degradação da qualidade de vida das pessoas, sobretudo nos
grandes centros, tem raízes estruturais. O chamado “inferno urbano” não
se explica simplesmente por razões demográficas e imediatas, setoriais.
Segundo o economista Reinaldo Gonçalves, o modelo liberal periférico,
que a década do lulopetismo não reverteu, implicou “um país
‘invertebrado’, com a perda de legitimidade do Estado (Executivo,
Legislativo e Judiciário) e das instituições representativas da
sociedade civil (partidos políticos, centrais sindicais e estudantis,
organizações não governamentais...)
Trata-se de um social-liberalismo
corrompido por patrimonialismo, clientelismo e corrupção e garantido
pelo ‘invertebramento’ e pela fragilidade da sociedade civil”. Gonçalves
lembra o crescente endividamento das famílias pobres e de classe média
como fator de inquietação social, no contexto econômico de
liberalização, privatização, desregulação, dominância do capital
financeiro, subordinação e vulnerabilidade externa estrutural: “a
distribuição limita-se à redistribuição incipente da renda entre os
grupos da classe trabalhadora de tal forma que os interesses do grande
capital são preservados; não há mudanças na estrutura primária de
distribuição de riqueza e renda no que se refere aos rendimentos da
classe trabalhadora versus renda do capital”.
“Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”.
A multidão produz uma sensação de força que pode se tornar tão generosa
quanto... pretensiosa. Não se muda o país sem o enfrentamento, por
exemplo, da questão da dívida pública. Ela comeu 44% do Orçamento da
União em 2012 (R$ 753 bi), enquanto a Saúde recebeu 4% (R$ 71 bi) e a
Educação 3,3% (R$ 57 bi). Transportes ficaram em 0,7%, Segurança 0,39% e
Habitação 0,01%. Para este ano de 2013, o valor a ser pago em juros e
amortizações da dívida subirá 20%, para gáudio dos grandes rentistas do
capitalismo financeirizado. As mudanças só serão estruturais e não
cosméticas com um novo paradigma de modelo econômico, e as consequentes
Reformas Tributária, Administrativa e Política. A questão ambiental, tão
crucial, não estava significativamente representada nas ruas. Sem isso,
o transtorno não transforma. E o que alguns proclamam como revolução
será apenas pontual irrupção.
Chico Alencar
Chico Alencar é Deputado Federal pelo PSOL-RJ |
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