Em um país que busca combater a violência contra a mulher em seus muitos aspectos e, em especial, combater o crime de estupro, chama a atenção o silêncio da grande imprensa em torno do caso
Não demorou muito e o BBB é caso de polícia. Mais, é caso de estupro. Mais, é caso do habitual descaso com que a programação da tevê aberta brasileira é tratada tanto pela sociedade quanto pelas instâncias governamentais.
A 12ª edição de um dos programas mais fúteis dentre a enormidade de produção de lixo televisivo nem chegou a completar uma semana de existência e já mostrou a que veio: vender cabeças vazias em corpos sarados e uma série quase interminável de comportamentos humanos aceitáveis na esfera privada e patéticos quando transbordam para a esfera pública.
Na noite de sábado [14/1], festa no BBB. Prenúncio de comas alcoólicos e certeza de danças variando entre o sensual e o erótico, ritmo alucinante, luzes piscando e tudo contribuindo para a exposição, sem reservas, dos instintos humanos. Na madrugada de domingo, o Twitter passa a movimentar um sem número de mensagens denunciando Daniel de ter estuprado Monique, tudo captado pelas lentes do BBB, tanto imagem de cobertor em movimento quanto som. O problema, segundo o Twitter, é que apenas um dos dois parece estar vivo – apresenta, vamos dizer, sinais vitais. Este seria o Daniel. Não tardou para que hashtag #DanielExpulso viesse a ser um dos tópicos mais comentados do domingo.
E a onda se espraia na internet com força de tsunami: todos se unem para pedir a cabeça do Daniel e, de quebra, criticar ferozmente a existência de um programa como o Big Brother Brasil. Muitos questionam a correção em classificá-lo como programa. Muitos anunciam que irão boicotar a marca de automóveis Fiat, aquela que premia os carros entre os participantes e entre a audiência, e muitos clamam por intervenção do governo na grade de programação da tevê aberta.
Caso de polícia
Na tarde da segunda-feira [16/1], investigadores da polícia vão ao Projac (centro de produção da emissora, localizado na Zona Oeste do Rio) para apurar a suspeita de que Daniel teria abusado sexualmente de Monique durante a madrugada do último domingo [15/1]. A essa altura, Monique, a presumida vítima, é chamada no “confessionário” para dar explicações sobre o que aconteceu entre ela e Daniel na madrugada de segunda-feira. A moça parece não dizer coisa com coisa, algo como “não sei muito bem”, “acho que não passamos disso”, “ele seria muito mau-caráter se tivesse se aproveitado de mim”, e por aí vai. Logo, as notícias na internet, em particular no sítio G1, da TV Globo, produtora e responsável pela “atração”, passam a divulgar que a moça negou a ocorrência de estupro e replicam a fala do diretor-geral do reality show, J.B. Oliveira, o Boninho. “Ela não confirmou que teve sexo e disse que tudo o que aconteceu foi consensual. Não dá para garantir que houve sexo, muito menos estupro. Eles estavam debaixo do edredom e de lado. Mas o mais importante é que ela [Monique] estava consciente de tudo. Ela me disse que na hora que o clima esquentou pediu para ele [Daniel] sair da cama”. Não ficaria por aí: “O que está acontecendo nada mais é que racismo”.
Ainda na segunda-feira, a ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Iriny Lopes, enviou ofício ao Ministério Público do Rio de Janeiro solicitando que o órgão “tome providências em relação ao suposto estupro que teria acontecido dentro do programa Big Brother Brasil 2012, exibido pela TV Globo.”
Nesta mesma noite, Pedro Bial lê em teleprompter a nota oficial da TV Globo dando conta da expulsão de Daniel por “haver infringido gravemente o regulamento do BBB”. É evidente o clima de constrangimento, sentimento que nem deveria existir em se tratando do BBB, que bem poderia ser visto como uma gincana ininterrupta de constrangimentos... à condição humana. Patética a figura de Bial. Porque ele é aquele jornalista que cobriu a histórica derrubada do muro de Berlim, em novembro de 1989, e mostra à larga que o seu talento é melhor aproveitado fazendo o que faz há 12 anos seguidos no BBB: uma mistura de mestre-de-cerimônias com animador de picadeiro e bedel de escola primária com direito a filosofices tão rasas quanto o programa em que foi aceito como sumo pontífice. Fez o caminho de volta sem ao menos ter ido.
Silêncio da imprensa
Em um país que busca combater a violência contra a mulher em seus muitos aspectos e, em especial, combater o crime de estupro, chama a atenção o silêncio da grande imprensa em torno do caso. Sim, porque pedidos pela expulsão de Daniel e punições à TV Globo não partiram dos jornais Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e muito menos da emissora-líder na desconfortável posição de facilitar a ocorrência de estupro, com tudo gravado, segundo a segundo, e retransmitido para todo o Brasil. As denúncias começaram na forma de “piados” (twitter, em inglês), passaram pelo Facebook e tomaram forma nos tais blogues sujos (para a grande imprensa) e alternativos (para a cidadania).
No espaço de 24 horas, muitas águas rolaram nos desfiladeiros oceânicos da internet. Muitos levantaram o assunto na forma de algo adredemente planejado pela emissora do Jardim Botânico carioca para alavancar a audiência do BBB nesta sua 12ª edição. Outros tantos foram mais enfáticos e exigiram nada menos que a suspensão do programa por tempo ilimitado ou, ao menos, pelo tempo em que durarem as investigações policiais. Mas isto é pedir muito quando estão em jogo interesses unicamente comerciais. Porque o dinheiro não tem nem pátria, ética, nem moral, nem costumes. Tem apenas a densidade que seu proprietário a ele conceda. E nesses tempos em que a liberdade é vista como garantia de expressão dos instintos humanos básicos a qualquer momento, o sucesso nada mais é que conseguir esticar ao máximo seus quinze minutos de fama (lembram do Andy Warhol?), amealhar bens materiais e financeiros sem qualquer escrúpulo, usando os meios mais torpes para sua consecução. Neste contexto, não há muito o que esperar.
Nos últimos três anos escrevi no Observatório da Imprensa críticas ao conteúdo, formato, estilo, produção e transmissão do Big Brother Brasil. Tratei de estética, de conteúdo, de ética e de direitos humanos. Abordei a questão da privacidade e o circo de horrores que a qualquer momento poderia vir a ser a marca registrada do BBB. Depois, resolvi não mais escrever. Porque é difícil falar para o deserto, ou pior, para o vácuo. Mas com a chegada da polícia ao Projac julguei oportuno voltar a tratar do “assunto”. Não porque o programa mereça, mas sim porque é um momento propício para debater sobre a sociedade que temos e a sociedade que queremos.
E qual o papel da mídia, enquanto espelho da realidade, na formulação dessa nova sociedade, uma sociedade que seja justa, igualitária, fraterna, inclusiva e promotora dos direitos humanos?
Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor Fórum
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