O
acontecimento político mais importante para a história recente do
Brasil foi a eleição de Lula para presidente, em 2002. Não preciso
lembrar aqui as consequências sociais positivas desse fato; elas foram
sólidas o suficiente para garantir a continuação do projeto até hoje.
Mas é preciso lembrar o que custou de resignação ao país esse projeto.
Sob alguns aspectos, o lulo-petismo tem sido a continuação da
modernização conservadora do Brasil. Já sabemos as virtudes e os limites
desse projeto.
Marcelo Freixo, candidato a prefeito do Rio,
representa a possibilidade de avançar lá onde o projeto lulo-petista,
por suas características estruturais, não pôde e não poderá fazê-lo. O
preço que a profunda reforma do governo PT cobrou à sociedade brasileira
é alto: nada menos que a resignação à política como atividade em larga
medida suja, feita de alianças oportunistas, em nome de interesses de
grupos particulares, feita também de práticas ilícitas, tudo em nome da
famigerada governabilidade, que é apenas um eufemismo para chantagem. Eu
votei nesse projeto; pareceu-me, e continuo pensando assim, que era o
melhor que se poderia realizar nas condições históricas daquele momento.
E muito se fez. Mas é hora de dar um passo à frente.
Freixo
representa a chance de uma transformação radical da mentalidade política
não apenas do Rio, como do país. Sua proposta, no fundo, é bem simples:
fazer política de verdade, isto é, orientada por interesses
republicanos, e não pela manutenção dos privilégios dos eternos donos do
poder. Isso significa refundar a política em todos os seus níveis, da
campanha à prestação de contas. Para Freixo, o financiamento de
campanhas deve ser público e transparente (pois, como lembra o deputado
federal Chico Alencar, “não é da natureza das empresas fazer doações, e
sim investimentos”); as alianças partidárias, orientadas por princípios
ideológicos (ele já recusou de antemão o eventual apoio dos patéticos
Garotinhos); e, principalmente, as decisões de sua gestão deverão ser
orientadas no sentido da justiça social e da garantia de cidadania aos
desprotegidos.
Uma candidatura assim, se vence uma eleição, tem um
efeito análogo ao da lei da ficha limpa, só que em sentido positivo.
Enquanto a lei da ficha limpa impede os políticos infratores da
lei de se candidatar, colocando um freio na política tradicional à
brasileira, uma eventual vitória de Freixo provaria que é possível
fazer política verdadeira no país. Se isso acontecer, o argumento
resignado que sustenta as alianças espúrias sofrerá um forte abalo.
Muitos cidadãos de espírito republicano, hoje desencorajados pela
sujeira da política nacional, poderiam se engajar na política
institucional. E o que hoje parece utópico — que a política no Brasil
não seja um negócio de canalhas — provaria ser realizável.
Alguém a
essa altura dos meus argumentos poderia evocar a repetida objeção: “Mas
você está falando de ideias e princípios; política é feita de ações
concretas. Que experiência administrativa tem o Freixo?” Essa objeção
tornou-se inaceitável depois de Lula, sobre quem ela incidia com força.
Mas a melhor resposta a ela tem sido dada pelo próprio Freixo: é preciso
sempre desmascarar esse discurso do gerente, pois ele pressupõe uma
oposição entre política e administração, ideologia e práxis,
enquanto na verdade toda e qualquer ação administrativa é politicamente
orientada. Não existe essa figura do gerente não ideológico.
Concretamente falando, essa figura apenas perpetua a situação presente.
Qualquer pessoa inteligente tem capacidade administrativa (basta delegar
as funções para as pessoas tecnicamente competentes para
desempenhá-las) — o que distingue os políticos é a política, ou seja, de
que valores suas ações estarão a serviço.
Vim falando em termos
nacionais porque penso ser essa eleição do Rio a mais importante do
país, aquela que apresenta uma alternativa real num momento decisivo. No
contexto da política carioca, a dobradinha Paes-Cabral também já
mostrou seus limites; é hora de trocar o modelo de cidade-butique, de
megaeventos, que pode se tornar megaexcludente, por um projeto que não
faça da população de baixa renda moeda de troca barata, a ser
“realocada”, “desapropriada” ou convidada a se retirar pela
gentrificação.
Se um homem como Freixo vence as eleições, fica
provado que não somos obrigados a andar um passo para trás a fim de dar
outro à frente; não somos obrigados a engolir os velhos crápulas da
velha política em nome da governabilidade. Seria uma mudança, sem
precedentes, da mentalidade política. O Rio tem a chance de iluminar o
país. Não a desperdicemos.
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