Quem
imagina no socialismo venezuelano o bicho-papão pintado pela imprensa
brasileira se surpreenderá se vir de perto as conquistas do país vizinho
na última década
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Sob a batuta da mudança
A Virada Cultural, em Caracas, se chama Rota Noturna e ocorre uma vez
por mês. Em julho, bandas de rock, reggae, salsa e outros ritmos
embalaram milhares de jovens em pontos espalhados por todo o centro
histórico, numa festa que só terminou ao amanhecer. Na edição seguinte,
em agosto, a virada caraquenha teve como foco os museus, que ficaram
abertos a noite inteira, oferecendo a um público de todas as idades
recitais de música e poesia.
Para o visitante brasileiro, submetido ao bombardeio de grande parte
da imprensa comercial sobre os horrores da “ditadura chavista”, Caracas é
uma agradável surpresa. A população desfruta como nunca do espaço
urbano, que vem sendo recuperado depois de décadas de abandono.
Como em qualquer metrópole da América Latina, o contraste social na
capital venezuelana é dramático. Situada num estreito vale, com 20
quilômetros no sentido leste-oeste e apenas 4 no eixo norte-sul, a
cidade é rodeada por favelas. Nos bairros chiques há mansões suntuosas,
várias delas com campos particulares de golfe, luxo incomum no Brasil.
Lá moram os donos das fortunas acumuladas graças à renda do petróleo –
uma riqueza fabulosa, da qual o povo até recentemente só recebeu as
migalhas.
Com a chegada de Hugo Chávez à presidência, no final de 1998, as
regras do jogo mudaram. Um gigantesco pacote de programas sociais fez
cair o índice de pobreza de 70% para 28%. “Se temos a sorte de ter
petróleo, que seja usado em favor do povo”, defende Gustavo Borges,
coordenador de uma rede de rádios comunitárias em 23 de Enero, bairro
popular que está sendo urbanizado com a instalação de escolas, clínicas
de saúde, quadras esportivas e iluminação pública. No ano passado, em
viagem ao Brasil, Borges visitou a favela carioca de Rio das Pedras, e
se diz chocado com o que viu: “No seu país, a população mais pobre vive
em condições abaixo da dignidade humana”.
A melhora da realidade social venezuelana é, de fato, impressionante.
Em Caracas, dois teleféricos recém-inaugurados levam favelados até o
alto dos morros. Nas ruas, não se enxerga uma única criança pedindo
esmolas ou em situação de risco. Ninguém dormindo na calçada por falta
de abrigo. O que mais se destaca na paisagem urbana são os canteiros de
obras da Misión Vivienda, projeto governamental que pretende erguer em
dois anos 350 mil casas ou apartamentos (mais de 90% já entregues) para a
população sem teto ou precariamente instalada, no país inteiro. As
moradias populares são espaçosas, construídas com material de qualidade e
bem localizadas.
Muitos projetos habitacionais destinados aos mais pobres se situam em
bairros de classe média, rompendo a segregação social no espaço urbano.
Nem sempre os recém-chegados são recebidos com simpatia. “Existem
pessoas de classe média que não aceitam viver ao lado dos pobres”,
constata o arquiteto Francisco Farruco, um dos coordenadores da Misión
Vivienda. “Eles consideram o nível de educação dos novos moradores
inferior, ou inadequado seu comportamento, o que é muito discutível.”
Para Farruco, esses conflitos são inevitáveis em um país que está
reduzindo a desigualdade. Nas suas palavras: “O sonho de transformar
Caracas passa por integração. Estamos construindo uma cidade que rompa
com barreiras sociais”.
Erudição popular
Os sinais dessa mudança são muito claros. Como jornalista, viajei a Caracas várias vezes na década de 1990. Minha lembrança é de um lugar decadente e perigoso. Agora me surpreendi ao caminhar pela Sábana Grande, o centro comercial da cidade, limpo, bem iluminado e seguro. Numa esquina, um mágico reúne a seu redor dezenas de curiosos. Ali perto, crianças se divertem nos equipamentos recreativos instalados pela estatal Petróleos de Venezuela. A reurbanização daquela área faz parte de um imenso projeto de recuperação do espaço urbano, o que inclui teatros, centros esportivos, praças e monumentos históricos.
Entre os investimentos públicos, a ênfase à cultura chama atenção. Não por acaso, nos trens do metrô de Caracas se ouve música clássica o dia inteiro. É comum a presença de jovens carregando instrumentos. São alunos do Sistema Venezuelano de Orquestras, uma referência internacional. O país é, talvez, o único do mundo em que um maestro – Gustavo Dudamel, da Orquestra Sinfônica de Caracas – é um ídolo de massas.
A paisagem remodelada tem como pano de fundo uma transformação social mais profunda, que inclui a elevação da renda dos trabalhadores. Em 2011, a remuneração média teve um aumento real de 8,5% e o novo salário mínimo, anunciado em maio deste ano, um reajuste de 33,5%. A inflação, porém, é muito alta, 27% em 2011. O congelamento dos preços de 19 produtos essenciais garante uma relativa proteção ao poder de compra. E uma gigantesca rede de mercados e feiras livres estatais (a Mercal) oferece todos os itens da cesta básica pela metade dos preços do comércio privado.
Sem surpresas
A legislação trabalhista que entrou em vigor em maio amplia direitos
dos assalariados em uma escala sem paralelo em qualquer outro país. O
benefício em caso de demissão sem justa causa equivale à remuneração de
105 dias por ano de serviço. A trabalhadora que dá à luz ganha seis
meses e meio de licença e tem garantia de emprego por dois anos. Ainda
assim, a parcela da mão de obra com carteira assinada tem aumentado, e o
desemprego se situa atualmente em 7,5%, um índice próximo ao
brasileiro.
O “socialismo do século 21”, como Chávez batizou seu projeto político, convive com um setor privado que controla 70% da economia e garante gordos lucros aos empresários, graças à elevação do consumo popular. Do outro lado, as empresas operadas diretamente pelos trabalhadores crescem na preferência dos consumidores, com produtos como os laticínios Los Andes (vendidos até mesmo nas padarias dos bairros ricos) e o café La Fama de América, exportado para Europa e Estados Unidos. Na embalagem, essas mercadorias trazem sempre uma pequena frase, rodeada pelo desenho de um coração: Hecho em Socialismo.
Há ainda conquistas extraordinárias – que não caberão neste espaço – em educação, saúde e na participação política dos cidadãos, que se organizam em conselhos comunitários (mais de 40 mil, em todo o país) para fiscalizar as autoridades e definir investimentos públicos para as regiões onde moram. Como nada disso é divulgado na imprensa brasileira, na qual Chávez é apontado diariamente como tirano grotesco, imagino a dificuldade dos leitores em entender o fato de ele liderar as pesquisas para as eleições de outubro com uma vantagem de 15% a 25% sobre seu adversário direitista. Para quem conhece a verdadeira face da Venezuela, não há nisso surpresa alguma.
Rede Brasil Atual
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