Com a crise do mercado financeiro,
surpreendentemente, economistas e jornalistas liberais passaram a defender a
interferência do Estado na economia capitalista. Contraditoriamente ao seu
discurso clássico, marcado pela apologia do livre mercado como único regulador
da economia, os liberais defendem a ajuda financeira do Estado aos bancos e
empresas em estado falimentar. Teriam os liberais revisto suas teorias,
analisado seus equívocos e modificado suas posições? Trata-se de uma crise do
capitalismo ou do liberalismo?
Até bem pouco tempo, sequer a palavra “capitalismo”
era mencionada no discurso político dominante no mundo. Parecia que estávamos
vivendo em uma sociedade em que a desigualdade, a pobreza, a exclusão social e
a destruição ambiental, quando consideradas, eram geralmente analisadas como
sendo decorrentes da ação de indivíduos, sem que uma lógica estrutural
conduzisse os seres humanos a agir de determinada forma. Inclusive, em tempos
de crise, muitos intelectuais continuam moralizando a economia, procurando
os culpados: os assim considerados “maus capitalistas”, “maus banqueiros” e
“maus investidores”.
Mesmo com uma vasta disponibilidade de indícios
empíricos e de acúmulo teórico de análise crítica das forças destrutivas do
capitalismo, o discurso hegemônico continuava confundindo as causas com
soluções. Por exemplo, diante das constatações de que o livre mercado era
responsável pela generalização da crise capitalista em nível mundial, as
soluções apontadas sugeriam a ampliação do livre mercado, a privatização e a
interferência cada vez menor do Estado na economia.
Com o aprofundamento da crise e a perspectiva de
uma depressão econômica em nível internacional, agora os liberais utilizam uma
tática ideológica antiga: a naturalização da economia. Na Idade Média,
por exemplo, os senhores feudais, reis, nobres e demais privilegiados podiam
contar com a crença divina para justificar a situação social gerada pelo modo
de produção hegemônico. Atualmente, os liberais, confrontados com a negação
empírica das suas teorias, tentam difundir um inexorável determinismo natural
combinado com doses de cetiscismo para explicar seu fracasso teórico. O
discurso dominante tende a considerar que compreender a economia mundial, na
complexidade como ela se desenvolveu contemporaneamente, seria uma tarefa
impossível. Ou seja, a humanidade teria avançado muito em termos de ciências
naturais, de entendimento da astronomia, da física, da química e da biologia,
mas não teria condições de compreender os fenômenos econômicos em nível
internacional.
A tentativa de difundir uma noção de
incompreensibilidade da economia mundial, assim como a tentativa de naturalizar
os fenômenos econômicos, demonstra a perplexidade dos liberais com os atuais
acontecimentos. O comportamento não é novo: ao invés de assumir que a “mão
invisível do mercado” não funciona, contraditoriamente, se nega o próprio
discurso, afirmando a necessidade de ação emergencial do Estado. Isto é, a
negação hipócrita procura minimizar o fato da atual retórica estar revelando o
fracasso prático da sua teoria.
Curiosamente, entretanto, a atual crise econômica
internacional não é a primeira da história e podemos verificar enormes
paralelos com as crises anteriores, tanto no processo gerador da crise como na
tentativa de sua explicação. A primeira crise econômica mundial iniciou no dia
09 de maio de 1873 em Viena, atingiu Nova Yorque em seguida e, posteriormente,
Hamburgo, ampliando-se para os principais mercados capitalistas daquela época.
Se seguiram 5 anos de profunda depressão econômica. A segunda crise econômica
mundial, a mais conhecida, iniciou no dia 24 de outubro de 1929 e encerrou
somente com o final da segunda Guerra Mundial, com a vitória dos Estados Unidos
e seu domínio sobre o mercado mundial. Assim como em outros tempos, a maior
economia mundial passou a ser a maior potência militar, impondo seus
interesses, sua ideologia e sua linguagem
de forma hegemônica sobre os demais países.
O atual domínio estadounidense sobre o mundo se
justifica principalmente pelo seu poder militar (especialmente através das
armas nucleares) e a instituição do dólar como moeda-padrão para a economia
mundial. O longo período de hegemonia dos EUA é marcado por guerras e
destruição. O keynesianismo e a construção do Estado de bem-estar social contribuíram
para estabelecer ciclos de crescimento econômico num nível nunca antes visto na
história da humanidade. Isso serviu
para evitar o surgimento de um contra-poder, iminente com a existência de um
bloco não-capitalista (soviético e chinês), resultante de revoluções sociais no
mesmo período. Mesmo assim, a economia mundial ameaçava entrar em crise nos
anos 1980.
Com o desmoronamento da União Soviética e a queda
do Muro de Berlim (1989-1990), cerca de 2 bilhões de pessoas, que há mais de 50
anos estavam fora do alcance do capitalismo, dispondo de ¼ dos recursos
mundiais, passaram a integrar o mercado capitalista, permitindo um novo ciclo
de expansão, caracterizado como globalização econômica. Esse ciclo de
acumulação está chegando ao seu final, deixando, mais uma vez, explícitas duas
características fundamentais do capitalismo como modo de produção: a
instabilidade e a insustentabilidade.
A economia capitalista é marcada por crises
contínuas, umas menores e outras de caráter mundial. Em tese, portanto, podemos
afirmar que não existe capitalismo sem crise econômica. As crises cíclicas de
superprodução são intrínsecas a esse modo de produção, caracterizado pela
separação entre capital e trabalho. O crescente investimento em capital
constante (prédios, máquinas, tecnologia, etc.), desproporcional ao investimento
em capital variável (trabalho vivo), conduz a uma tendencial queda da taxa de
lucros, pois somente o trabalho gera o valor e a mais valia (fruto da
exploração do tempo de trabalho). Diante disso, os liberais procuram uma saída
de sobrevivência ideológica, pois não querem assumir que Marx tinha razão.
Os capitalistas, confrontados com essa fatalidade,
há muito tempo conhecida, tendem a investir em outros setores da economia
quando determinados investimentos passam a ser considerados menos lucrativos.
Assim, muitos investidores deixaram de investir na produção, passando a alocar
dinheiro no mercado imobiliário, em bolsas de valores e em bancos. Contudo,
“dinheiro não gera dinheiro”. Para que o dinheiro possa valorizar é necessário
que ele seja investido na produção, de forma que seja possível se apropriar do
excedente de valor gerado pelo trabalho. Por isso, as consequências negativas
sobre o capital produtivo são enormes, pois para suportar a carga do pagamento
de juros e satisfazer a expectativa dos acionistas, as indústrias, por exemplo,
são obrigadas a aumentar a mais-valia (a exploração do trabalho), através de
maiores jornadas de trabalho e menores salários. O efeito final, entretanto,
somente reforça o problema da crise de superprodução: os menores salários e o
desemprego diminuem o poder de compra, desaquecendo a economia como um todo e
estimulando os acionistas a investir em outros setores. A crise gira em círculo
e o espiral depressivo somente tende a aumentar.
A expectativa de valorizar dinheiro através do
mercado financeiro e imobiliário é comparável a um jogo de cassino, onde apenas
alguns se apropriam de vantagens a curto prazo, resultantes das perdas de
outros. Com a ampliação do mercado financeiro e a mundialização do capital, foi
generalizada em nível internacional uma espécie de cassino mundial, embora
mantendo o maior fluxo de capital entre os países capitalistas mais ricos. Para
que o mercado mundial de capitais pudesse crescer em tamanha proporção,
decisões políticas foram necessárias para permitir equiparações e garantias
mínimas aos investidores. A expectativa era estimular o crescimento da economia
através do fluxo de investimentos que, segundo a crença dos liberais, seria regulado
pela “mão invisível do mercado”.
Atualmente estamos diante de mais um fracasso
histórico do liberalismo. Nunca o mercado havia sido tão liberalizado e em
escala internacional. As expectativas dos liberais foram frustradas porque suas
teorias partem de uma ilusão central: a idéia de que o mercado seria uma força
autoreguladora e que, em função da concorrência, os recursos econômicos seriam
alocados da melhor maneira possível. Essa idealização do mercado como mecanismo
regulador segue uma lógica de pensamento que corrobora a circulação e o
aquecimento da especulação nas bolsas de valores.
Na realidade, entretanto, o mercado funciona com
base nas relações socias entre seres humanos que trocam produtos. O mercado é
regulado pela oferta e pela procura de mercadorias, uma relação meramente
quantitativa, que cumpre uma função de mediação. Mas, assim como a mercadoria
pode operar como fetiche, o processo de troca de mercadorias produz e necessita
de ilusões para continuar funcionando. Na lógica do mercado, os vendedores
pressupõem que compradores pagam, em forma de dinheiro (uma mercadoria comum
que serve para trocar mercadorias), e os compradores pagam porque
internalizaram a idéia da troca. Com base na mesma idéia, credores e devedores
negociam, acionistas e investidores aplicam dinheiro (mesmo quando este
continua nos bancos, sendo apenas uma expectativa, uma virtualidade, pois
trata-se de cifras, de transações bancárias sem o uso de moeda-papel, de
documentos que geram expectativa de pagamento).
Quando a virtualidade do mercado idealizado foi
confrontada com uma crescente impossibilidade real de pagamento (por parte do
assim chamado capitalismo real, dependente da produção), as expectativas dos
“apostadores” se reduziram a riscos. O problema maior, para além das
expectativas de ganho frustradas (como eram virtuais não poderiam ser
caracterizadas como perdas, pois se baseavam meramente em apostas) dos assim
chamados investidores, é a incidência negativa do crédito sobre a produção
capitalista, gerando endividamento, falências e uma depressão econômica real.
Contudo, a origem do problema continua na produção capitalista, tendencialmente
geradora de crises de superprodução. A crise financeira é sua decorrência e
apenas agrava a crise do capitalismo “real”, surgindo em escala global quando a
maioria dos economistas liberais a menosprezava como distante, localizada e
passageira, ignorando seu potencial destrutivo.
As soluções apresentadas para sair da crise
confirmam o caráter ideológico do liberalismo. A atitude de negação do próprio
discurso em favor do livre mercado e a proposta de “ajuda econômica” por parte
do Estado demonstram claramente o equívoco da concepção do mercado como
alocador de recursos: o mercado é um instrumento de poder que opera no sentido
da concentração de recursos econômicos, tendo como maiores consequências
negativas o desperdício (destruição do meio ambiente) e a exclusão social
(radicalização da desigualdade).
A força política da idéia de mercado se manifesta
na aceitação da premissa proposta: a necessidade de ajudar o capitalismo a sair
da crise. Em outras palavras, os prejuízos são socializados (na forma de
subsídios, ajuda financeira, isenção de impostos) e os benefícios privatizados
(os jogadores que perderam no cassino, utilizando dinheiro de outros, recebem
uma nova chance de jogar, novamente com o dinheiro alheio). O Estado se
endivida para ajudar os responsáveis pela crise com dinheiro público e, com
isso, continua reduzindo investimentos em programas sociais e em projetos de
infra-estrutura. E, enquanto isso, a concentração de renda e de capital
continua.
É claro que, diante das evidências do fracasso e da
fragilidade do capitalismo, o Estado poderia estatizar os bancos endividados,
estabelecer regras para evitar crises futuras e controlar o fluxo de capitais.
Mas, pelo contrário, a solução apresentada pelos liberais consiste em solicitar
a ajuda do Estado para ajudar o sistema a sair da crise e depois deixar o
mercado como regulador até que uma próxima crise se instaure. Essa é a função
do liberalismo, como teoria legitimadora do modo de produção capitalista,
conduzindo à aceitação das suas propostas por parte da maioria da sociedade,
que arca com o ônus da crise gerada em função da concentração do capital. A
evidência da fragilidade do capitalismo e do fracasso teórico do liberalismo,
entretanto, não conduzem, automaticamente, à sua superação, pois os interesses
que os fundamentam são mais importantes e se situam acima dos argumentos. Mesmo
assumindo a contradição no seu discurso, os liberais não extraem dela todas as
conseqüências, porque o interesse maior permanece na continuidade da produção
capitalista, a razão da existência do liberalismo como teoria. O “rei está nú”,
mas a crença ilusória no Deus que o instituiu continua lhe servindo de
vestimenta.
Antônio Inácio Andrioli Vermelho à Esquerda
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