segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A lógica cruel que perpassa nossas relações sociais

O Brasil começa com um gesto de generosidade invertida: civilizar os índios, explorando sua mão de obra e obrigando-os a converter suas almas a uma religião que lhes era estranha. Depois de quatro séculos, o Brasil começou a ser generoso com os escravos africanos: fez a Lei do Ventre Livre. Os filhos de escravos seriam libertos, mas as mães continuavam escravas. Houve generosidade também com os velhos escravos, quando já não poderiam mais trabalhar.

A Lei Áurea foi outra de nossas generosidades: os escravos já não poderiam ser vendidos nem obrigados ao trabalho forçado, mas não lhes demos terra para produzir a própria comida nem escolas a seus filhos.

Mais recentemente, quase no quinto centenário da existência do país, fomos generosos estabelecendo um salário mínimo. Mas tão mínimo que sempre foi insuficiente para cobrir os custos básicos dos serviços e dos bens essenciais. Para não ficar sem trabalhadores, houve outra generosidade: o vale-refeição. As famílias ficavam sem comida, mas os trabalhadores recebiam a comida que o salário não permitia.

Durante a escravidão, fomos generosos oferecendo “casa” para os escravos: as senzalas fétidas e insalubres. Quando a industrialização pôs os trabalhadores morando distante do lugar do trabalho e o salário não permitia pagar a passagem de ônibus, oferecemos, generosamente, o vale-transporte, mesmo que, no fim de semana, ele e a família não pudessem visitar parentes ou passear no centro da cidade.


GENEROSIDADE
Temos sido generosos ao oferecermos uma renúncia fiscal no cálculo do Imposto de Renda para financiar escolas particulares, dos filhos de ricos, num valor superior ao gasto médio anual por criança na escola pública, dos filhos dos pobres.

Generosamente, oferecemos Bolsa Família, mas não nos comprometemos em emancipar os pobres da necessidade de bolsas. Generosamente, não oferecemos creches e pré-escolas para nossas crianças, provocando desespero em milhares de mães.

Generosamente, oferecemos também cotas para facilitar o ingresso de jovens negros na universidade, mas não fazemos o esforço necessário para erradicar o analfabetismo, que tortura cerca de 11 milhões de brasileiros, em sua grande maioria, negros e pardos.

Somos generosos facilitando o endividamento das famílias da classe C para comprar carros a serem pagos em até cem meses, sem IPI, mas não eliminamos impostos sobre a cesta básica nem melhoramos o transporte público para todas as classes, inclusive a D e a E.

Nossa generosidade chega ao cúmulo de gastarmos muitos bilhões de reais para fazer no Brasil a Copa e a Olimpíada, às quais nossos pobres vão assistir pela televisão, e não adotamos o compromisso de investir os royalties do petróleo na educação de nossas futuras gerações.

Somos um país coerente com cinco séculos de generosidade seletiva invertida ou pervertida.

Cristovam Buarque

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