O Brasil começa com um gesto de generosidade invertida: civilizar os
índios, explorando sua mão de obra e obrigando-os a converter suas almas
a uma religião que lhes era estranha. Depois de quatro séculos, o
Brasil começou a ser generoso com os escravos africanos: fez a Lei do
Ventre Livre. Os filhos de escravos seriam libertos, mas as mães
continuavam escravas. Houve generosidade também com os velhos escravos,
quando já não poderiam mais trabalhar.
A Lei Áurea foi outra de nossas generosidades: os escravos já não
poderiam ser vendidos nem obrigados ao trabalho forçado, mas não lhes
demos terra para produzir a própria comida nem escolas a seus filhos.
Mais recentemente, quase no quinto centenário da existência do país,
fomos generosos estabelecendo um salário mínimo. Mas tão mínimo que
sempre foi insuficiente para cobrir os custos básicos dos serviços e dos
bens essenciais. Para não ficar sem trabalhadores, houve outra
generosidade: o vale-refeição. As famílias ficavam sem comida, mas os
trabalhadores recebiam a comida que o salário não permitia.
Durante a escravidão, fomos generosos oferecendo “casa” para os
escravos: as senzalas fétidas e insalubres. Quando a industrialização
pôs os trabalhadores morando distante do lugar do trabalho e o salário
não permitia pagar a passagem de ônibus, oferecemos, generosamente, o
vale-transporte, mesmo que, no fim de semana, ele e a família não
pudessem visitar parentes ou passear no centro da cidade.
GENEROSIDADE
Temos sido generosos ao oferecermos uma renúncia fiscal no cálculo do
Imposto de Renda para financiar escolas particulares, dos filhos de
ricos, num valor superior ao gasto médio anual por criança na escola
pública, dos filhos dos pobres.
Generosamente, oferecemos Bolsa Família, mas não nos comprometemos em
emancipar os pobres da necessidade de bolsas. Generosamente, não
oferecemos creches e pré-escolas para nossas crianças, provocando
desespero em milhares de mães.
Generosamente, oferecemos também cotas para facilitar o ingresso de
jovens negros na universidade, mas não fazemos o esforço necessário para
erradicar o analfabetismo, que tortura cerca de 11 milhões de
brasileiros, em sua grande maioria, negros e pardos.
Somos generosos facilitando o endividamento das famílias da classe C
para comprar carros a serem pagos em até cem meses, sem IPI, mas não
eliminamos impostos sobre a cesta básica nem melhoramos o transporte
público para todas as classes, inclusive a D e a E.
Nossa generosidade chega ao cúmulo de gastarmos muitos bilhões de
reais para fazer no Brasil a Copa e a Olimpíada, às quais nossos pobres
vão assistir pela televisão, e não adotamos o compromisso de investir os
royalties do petróleo na educação de nossas futuras gerações.
Somos um país coerente com cinco séculos de generosidade seletiva invertida ou pervertida.
Cristovam Buarque
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