Não sem razão, o físico inglês Paul Dirac foi batizado por seu colega dinamarquês Niels Bohr de “o homem mais estranho do mundo”. A alcunha inspirou o título de uma biografia escrita por Graham Farmelo que permanece inédita no Brasil: The strangest man – the hidden life of Paul Dirac, mystic of the atom. Lá fora, resenhas, elogios e prêmios. Aqui, até onde foi possível apurar, a única menção ao livro foi numa coluna para adolescentes num jornal paulistano (que o considerou “melhor livro do ano”). De lá para cá, silêncio do meio editorial.
Num mundo cheio de personalidades esquisitas e transtornos psiquiátricos cientificamente fundamentados, a personalidade excêntrica de Paul Dirac (1902-1984) poderia ser só mais uma. No entanto, a seu favor (ou, no caso, contra ele), pesa seu currículo: trata-se do mais jovem teórico até hoje a ganhar o Nobel de Física – isso foi em 1933. E já que a palavra consta dos dicionários: gênio.
Se alguém fizer uma lista dos cinco maiores físicos teóricos do século passado e não incluir esse inglês de cabeça triangular e bigodinho irritante à francesa, desconfie. Você não estará diante de um historiador da física profissional.
Dirac foi o cientista que juntou, num só quadro teórico, os dois pilares da física contemporânea: a relatividade (no caso, restrita) e a mecânica quântica. A primeira lida com fenômenos que envolvem velocidades próximas à da luz e massas que viram energia (e vice-versa), como previsto pela famosa fórmula E=mc2. A outra trata das profundas estranhezas do mundo atômico e subatômico, onde entidades ora são corpúsculos, ora são ondas, corpos se comunicam instantaneamente e partículas podem ocupar dois lugares ao mesmo tempo.
Estranhezas comparáveis à personalidade de Dirac.
Mas o inglês será sempre conhecido por ter – não sem resistência – visualizado na equação que hoje leva seu nome a antimatéria – no caso, apontou a existência de antielétrons, batizados logo depois pósitrons. A diferença básica entre matéria e antimatéria é o fato de suas cargas elétricas serem opostas. Hoje, a física sabe: toda partícula tem sua antipartícula. Na época, no entanto, aceitar a existência de um elétron positivo não foi discussão calma.
A antimatéria que brotou da mente de Dirac se mostrou realidade quatro anos mais tarde. Hoje, um dos temas candentes da física é: por que a matéria preponderou sobre a antimatéria na criação do universo?
Quadro psiquiátrico
O ponto alto do livro – e, talvez, o mais corajoso – é Farmelo esboçar Dirac como portador da síndrome de Asperger, tipo de autismo leve. Os argumentos do autor são convincentes, e o leitor fica fortemente desconfiado de que tamanhas esquisitices só poderiam ter raízes cravadas num quadro psiquiátrico.
Quando o irmão de Dirac se matou – talvez, em resposta a um quadro mental de depressão, fermentado pela chantagem emocional da mãe e pela mão pesada do pai no destino dos filhos –, o físico estranhou o fato de a perda de um filho causar tamanha dor nos pais. Além de lacônico até a fronteira da antipatia, Dirac era conhecido por interpretar literalmente as frases ditas a ele. Ele parecia demonstrar (alguma) afeição apenas com os mais chegados – com esses, apesar de lacônico, era sempre amigo fiel.
O físico se casou em 1937 com Margit Wigner, irmã do físico e matemático húngaro Eugene Wigner. Com Mandi, como também era conhecida, teve duas filhas. O Dirac de Farmelo é alguém que olhava para família, colegas e mesmo mulher e filhos com profunda indiferença, uma insensibilidade emocional patológica.
Três tópicos, porém, despertavam a atenção de Dirac e, com sorte, o fariam expelir meia dúzia de fonemas – e, com mais sorte ainda, uma expressão algo diferente de um rosto desértico em emoções:
1. Cher. Os programas dessa cantora norte-americana aos domingos à noite eram o ponto alto da semana para aquele físico magro, relativamente alto, de movimentos lentos, entradas profundas. Quando uma dessas apresentações coincidiu com a cerimônia do Oscar – da qual sua mulher não abriria mão –, o casal, depois de alguma tensão, decidiu comprar um segundo aparelho de TV – na época, bem longe dos preços acessíveis de hoje;
2. Mickey Mouse. O camundongo tinha poder suficiente para fazer Dirac largar o trabalho – uma de suas obsessões – e passar a tarde em uma sessão especial de cinema;
3. Valsas de Chopin. Aqui, bem, nada de esquisito.
Depois da Segunda Guerra, Dirac – mesmo alertado por colegas – saiu dos trilhos da física. Algo quase impensável para alguém que era referência em mecânica quântica até mesmo para Einstein (“Onde está meu [livro do] Dirac?”, costumava pedir o físico de origem alemã). Por sinal, assim como Einstein, teve dificuldades para entender os desígnios da estrutura teórica que criou. Como já foi dito, era o criador estranhando a criatura, esta agora domada por gerações mais jovens e impertinentes de físicos.
O livro de Farmelo é tremendamente saboroso. Volumoso, com acesso a documentação inédita, suas 539 páginas dão à obra exatos 4 cm de altura. É leitura fluida e bem escrita.
Alerta: não é livro para conhecer a obra de Dirac; ou seja, passa longe das chamadas biografias intelectuais – e que Farmelo seja abençoado por essa escolha. Se o leitor quer se enveredar por aí, sugere-se Dirac – a scientific biography, do competente historiador da física dinamarquês Helge Kragh. Obra de respeito, mas para pouquíssimos, mesmo os cevados nas artes dos números e símbolos abstratos.
Farmelo fez quase um livro sobre estranhezas da mente – que, mesmo assim (ou necessariamente assim), é notável. Nesse aspecto, lembra Uma mente brilhante, da jornalista Sylvia Nasar. A diferença é que Dirac nunca teve, como John Nash Jr., que engolir psicotrópicos pesados para levar seu dia a dia.
Mas, por enquanto, a melhor definição desse excelente livro de Farmelo fica por conta de nossas editoras: aquele que ainda não foi traduzido para o português. O mercado editorial brasileiro já comeu várias moscas. Mas manter The Strangest Man inédito é falta indesculpável.
Cássio Leite Vieira é jornalista e historiador da ciência. É editor de internacional da revista Ciência Hoje e autor de Einstein, o reformulador do universo (Odysseus).
http://revistapiaui.estadao.com.br/blogs/questoes-da-ciencia/geral/o-silencio-mais-estranho
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