A iminente escassez de recursos naturais do planeta coloca limites à
indústria e exige mudança do atual padrão de produção, afirma o
diretor-presidente do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente, Helio
Mattar. Há dois anos, 16% da população mundial (cerca de 1,4 bilhão de
pessoas) eram responsáveis por 78% do consumo. Agora, são 150 milhões de
novos consumidores por ano. Se o mundo seguir nesse ritmo, em dez anos
serão três bilhões de consumidores e, segundo Mattar, não haverá
recursos para dar conta de toda essa demanda.
Segundo especialistas, a
responsabilidade pela mudança nesse modelo tem de ser compartilhada pela
indústria, revendo o padrão de produção; pelo governo, criando um marco
regulatório para padrões de produção e durabilidade; pelos
consumidores, cobrando uma maior durabilidade dos produtos e reclamando
ao identificar problemas; e pelas entidades, fazendo pressão e dando
subsídios aos cidadãos para que estes optem por produtos mais
eficientes.
A pouca durabilidade dos produtos e a dificuldade de consertá-los não
acontecem por acaso. A troca rápida, segundo organizações, define um
padrão de produção praticado há quase um século pela indústria: a
obsolescência programada. O conceito consiste em reduzir a vida útil e
dificultar o conserto de produtos, modificando os projetos e peças com
mais frequência, principalmente eletrodomésticos e eletroeletrônicos,
para garantir que sejam usados pelo menor tempo possível, acelerando o
ciclo de consumo.
Inmetro não avalia durabilidade
A
durabilidade dos produtos também não é um item avaliado como qualidade
nos testes feitos pelo Inmetro. Segundo o instituto, “o foco da atuação é
voltado para questões como a segurança do produto, saúde e meio
ambiente”. E completa: “Pela Nova Lei do Inmetro, anunciada no Plano
Brasil Maior, o instituto passa a ter poder para fazer estas avaliações,
visando a combater práticas enganosas de comércio, inclusive os
requisitos de usabilidade e pós-venda. Porém, ainda está em fases de
estudos, não há nenhuma conclusão ou ação em execução”.
Amaury
Martins de Oliva, diretor do Departamento de Proteção e Defesa do
Consumidor (DPDC) da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), afirma
que não existe no Código de Defesa do Consumidor (CDC) uma
obrigatoriedade de a indústria informar qual é o tempo de vida útil do
produto:
— O artigo 32 afirma que fabricantes e importadores
deverão assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto
não cessar a fabricação ou importação do produto.
Para o
pesquisador na área de Consumo Sustentável do Instituto Brasileiro de
Defesa do Consumidor (Idec), João Paulo Amaral, é preciso mudar este
conceito:
— Hoje é muito subjetivo saber quanto dura um bem
durável (eletroeletrônicos) ou semidurável (roupas e calçados). Não
existe data de validade para eles. É preciso um marco regulatório.
Segundo
o presidente do Akatu, quanto mais roupa se produz, por exemplo, mais
água e energia se consome, gerando monóxido de carbono e colaborando
para o aquecimento global. A moda, que muda a cada estação, leva as
pessoas a consumirem mais. O consumidor precisa ser educado para
perceber a importância de sua contribuição na transformação da sociedade
de consumo para a de bem-estar, explica, fundada na satisfação derivada
pelo uso do produto, e não por sua compra.
— Fiquei oito anos e
meio usando o mesmo notebook, fazendo todos os upgrades possíveis. Só
troquei quando os novos softwares de que precisava não eram mais
compatíveis com a memória. Agora, já estou há dois anos com o mesmo
computador. Tenho televisores com 12 para 13 anos de idade. Não dá para
se deixar iludir por mudanças tecnológicas que não são totalmente
necessárias — diz Mattar.
Amaral observa que, além de os produtos
começarem a quebrar inesperadamente, mais recentemente a obsolescência
programada passou a ser aplicada de outras formas:
— Faltam peças
na assistência técnica para substituição. No caso de celulares,
notebooks e tablets, os encaixes das baterias são modificados
constantemente, forçando uma nova compra quando essa peça perde a vida
útil, já que também são produzidas em número restrito para substituição.
As
cafeteiras, sanduicheiras, liquidificadores e ferros de passar roupa
amontoados sobre as prateleiras da loja de consertos do carioca Júlio
Rangel, de 51 anos, evidenciam essa obsolescência programada — uma
ameaça para o eletrotécnico, que teme ter de encerrar a atividade que
mantém há 20 anos em uma galeria no bairro do Flamengo, sua única fonte
de renda. Ele observa que o movimento na oficina começou a cair com a
globalização e a invasão dos produtos chineses ao Brasil, no fim da
década de 90:
— De um ano para o outro, as peças dos aparelhos
mudam e já não é possível mais encontrar nas autorizadas. Ou o conserto
se torna mais caro que comprar um novo, porque tem muito importado
barato. Então, as pessoas acabam abandonando, principalmente cafeteiras e
ferros de passar roupa, aqui — conta, enquanto conserta um ventilador
de pelo menos dez anos de uso, o que só foi possível com o
aproveitamento da peça de outro aparelho descartado pelo dono.
A
cineasta alemã Cosima Dannoritzer, que dirigiu o documentário espanhol
“Comprar, tirar, comprar” (“Comprar, jogar fora, comprar”, em tradução
livre), de 2010, que denuncia casos de obsolescência programada pela
indústria, afirma que as empresas continuam dizendo que nunca fariam
algo assim, que existe uma razão técnica para isso e que apenas querem o
melhor para o consumidor.
Um dos exemplos citados no documentário
vem da Epson. Um homem leva a impressora que parou de funcionar à
assistência técnica, que constata ser impossível consertá-la.
Insatisfeito, procura na internet uma alternativa para resolver o
problema e descobre um chip que determina a duração do produto. A
intervenção funciona da seguinte forma: quando a quantidade de páginas
programada pela fabricante é impressa, a impressora trava. Para o
consumidor, a mensagem é a de que a máquina quebrou e não tem conserto.
—
A empresa alega que o chip contador que bloqueia a máquina é para
proteger a impressora porque, quando aparece o erro, é o momento de
checar se é necessário limpar o depósito de sobras de tintas. Mas isso
não é informado. Em vez disso, mandam a um serviço técnico que tampouco
sabe o que acontece. E, assim, uma máquina que está boa se encontra em
vias de ser descartada — critica a cineasta.
Indústria não se manifesta
Como
bem traduz o título em inglês do documentário, “The light bulb
conspiracy” (“A conspiração da lâmpada elétrica”, em tradução livre), o
início da adoção desse padrão de produção está vinculado à indústria de
lâmpadas. No início dos anos 1920, um grupo formado pelas empresas
Philips, Osram e General Electric ficou conhecido como cartel Phoebus ao
controlar a produção e venda das lâmpadas, reduzindo sua vida útil de
2,5 mil horas para mil horas.
O objetivo, explica Mattar, era
forçar a troca de lâmpadas mais cedo para aumentar a produção e a
rentabilidade da indústria. Também foi usado o argumento da necessidade
de gerar mais empregos. A decisão de diminuir a durabilidade deste
produto foi formalizada, inclusive, por meio de ata assinada pelos
presidentes das empresas.
Procurada para comentar o assunto, a
Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) não
retornou os contatos telefônicos nem os e-mails. A Associação Nacional
de Fabricantes de Produtos Eletroeletrônicos (Eletros) informou que, em
razão de “indisponibilidade de agenda”, seu porta-voz não poderia falar.
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