E se nossas vidas valessem dinheiro? Bem, considerando que hoje há
mais trabalho escravo do que em qualquer outra época, então não é muito difícil
imaginar, certo? Errado. Eu me refiro a realmente ser dinheiro. E é isto que
acontece no filme “In Time” (O Preço do Amanhã).
A ficção é estrelada por Justin Timberlake (Will Sallas) e Amanda
Seyfrield (Sylvia Weis). O filme começa explicando certos detalhes: os atuais
habitantes do mundo foram geneticamente modificados para que tivessem um tipo
de relógio digital no antebraço esquerdo. Até os 25 anos, todos os relógios
permanecem zerados, quando as pessoas param de envelhecer. A partir deste
momento, o relógio passa à contagem de um ano. Quando essa contagem termina, a
pessoa morre, ou seja, todos tinham um ano de vida.
Nesse mundo fictício, a moeda universal é o tempo de vida de cada
um. Sendo assim, as pessoas trabalham para ganhar horas de vida, compram comida
e bebidas pagando horas de vida, usam as horas de vida para pagar o aluguel, a
passagem de ônibus, o pedágio, etc... Ruim? Fica pior, mas não por algo
fictício. Assim como na nossa sociedade, uma pequena elite tem mais do que a
massa mais pobre. Isso quer dizer que, no filme, poucas pessoas vivem centenas
ou milhares de anos de vida enquanto a maioria chega a viver menos de 50 anos,
contando os 25 anos nos quais o relógio biônico fica zerado. Esse é o contexto
e realidade do filme, ele intensifica e explicita o nosso sistema capitalista,
a única mudança é que a “moeda” é o tempo de vida. O filme é uma crítica clara,
séria e pesada ao sistema desigual, desumano e classicista, que chamamos de
capitalismo.
A história se inicia quando Will acorda, fala com sua mãe, que tem
a aparência de 25 anos, como todos, e vai ao trabalho. No fim do expediente,
todos fazem fila para passar ao lado de uma cabine com um homem que passa uma
caixinha de metal (parecida com um leitor de preços de supermercado) no pulso
dos trabalhadores, e assim pagar-lhes as horas devidas. Will, então, reclama
que sua produção aumentou, mas não recebeu o tempo justo. O homem da cabine
então diz que a cota de horas de trabalho diárias também aumentou. Esse é o
primeiro sinal de exploração e mercantilização da vida.
Depois do trabalho, Will vai a um bar, onde encontra seu amigo e
este lhe diz que há um homem com mais de 1 século no relógio e que estava
pagando bebidas a todos. Will chega perto do homem e diz que ele está correndo
perigo de ser assaltado, pois estava na zona errada (no filme, há zonas
numeradas usadas para separar as pessoas de diferentes classes econômicas. Para
atravessar de uma zona a outra, é preciso pagar dias ou meses do pedágio). Dito
e feito: a “Máfia do Tempo”, um grupo de homens que procuram pessoas com muito
tempo no relógio para zerar, sugar o tempo de alguém para si próprio, encontra
o homem com 1 século e tenta roubá-lo. Porém, Will o ajuda a fugir e, por isso,
o homem dá todo o tempo de seu relógio a Will, mas não sem antes se apresentar (seu
nome é Henry) e explicar o funcionamento do sistema. Henry diz que já estava
com 25 anos há 105 anos, fala que o sistema se beneficia disto, da
desigualdade. Ele explica que, para existirem imortais, outros têm que morrer.
Will, agora com 1 século no relógio, depois de ver a morte de sua
mãe, enquanto corria para doar a ela algum tempo, vai para outra zona, uma
zona de ricos. Lá, ele se hospeda num hotel e vai a um cassino. No jogo de
pôquer, ele conhece um magnata da família Weis, um banqueiro. Durante o jogo,
Will e Weis conversam sobre a vida e a sociedade. Weis disse que amava o
sistema, chama-o de “capitalismo darwiniano”, no qual as leis do capitalismo
tinham uma ênfase evolutiva e “natural”, sobrevivia, literalmente, o mais
forte, quem tinha mais tempo. Após o jogo, e mesmo perdendo, Weis apresenta sua
filha Sylvia Weis, e convida Will para um jantar em sua casa. Enquanto isso, a
“Guarda do Tempo” está procurando Will por suspeitar que ele tenha roubado o
tempo de Henry.
No jantar acontece a reviravolta, quando a Guarda do Tempo
encontra Will e suga quase todo seu tempo, deixando-o com apenas algumas horas,
mas ele consegue fugir fazendo Sylvia de refém. No dia seguinte, Will liga para
o magnata e o chantageia, dizendo que se ele depositasse 500 anos numa loja de
empréstimos, sem nenhum juro, sua filha seria libertada. O empresário não cede
e, com raiva, a refém passa a ser cúmplice de Will. A partir daí, os dois
passam a roubar bancos e distribuir o tempo entre os moradores. No decorrer do
filme, os roubos se tornam frequentes e, durante um desses assaltos, Weis está
numa chamada com outros investidores e eles o alertam que a distribuição de
muito tempo em zonas pobres pode quebrar o sistema.
E é isso que acontece no final, quando Will e Sylvia vão até Weis
e abrem o cofre da sede da empresa e roubam 1 milhão de anos. Depois de um
pouco de perseguição, eles conseguem distribuir todo este tempo. Isto já causa
uma crise no sistema capitalista darwiniano. Mesmo assim, no fim do filme, a dupla
de ladrões vai roubar um banco muito maior que o da família Weis, prometendo
acabar de vez com o sistema, já que, com muito tempo de vida distribuído, as
pessoas deixariam de trabalhar e a produção cairia.
Considerações: O filme é praticamente os livros de “O Capital” e “Contribuição à
Crítica à Economia Política”, só que mais dinâmico. O filme mostra ideias
marxistas importantes que expõem o funcionamento contraditório do sistema como
o fetichismo, mercantilização da vida, mais-valia, desigualdade e a teoria de
valor marxiana.
1- O principal, mas que é estampado tantas vezes do filme, que nem é
levado em conta numa análise superficial, é o modo como o tempo de vida é pago.
Sim, a troca entre pessoas se dá por um aperto de mãos, mas, no filme, o pagamento
de salários, a obtenção de juros e outras operações são feitas por uma
maquinazinha com um leitor óptico de laser vermelho. Extremamente parecido com
um leitor de código de barra de supermercado. Isso, claramente, denota um
aspecto “morto” da vida. No entanto, mais que isso, mostra que o valor de troca
dessa sociedade é a própria vida. Isto é o ápice da mercantilização da vida, é
o próprio fetichismo de mercadoria, em sua forma mais simples e pura a ser
entendida.
“O fetichismo da mercadoria designa
o fato de o valor dos produtos acabar por ser atribuído às suas qualidades
intrínsecas, fazendo assim esquecer que elas foram fabricadas pelo homem. Esta
ilusão torna a relação entre homens em simples relações entre coisas. O mundo
do objeto acaba por dominar o mundo dos homens. Todos os valores tornam-se,
objetos das relações mercantis”.
Ora, o tempo de vida é produzido por ninguém menos que os próprios
trabalhadores, já que toda riqueza é produzida por eles. Além de eles
produzirem indiretamente o tempo de vida, o mesmo é usado, tanto como moeda,
como bem de consumo. Diferentemente do escambo, em que se trocam bens
diferentes ou iguais em busca de um “valor padrão”, para que nenhum dos envolvidos
saia perdendo, no filme, o tempo de vida não é só tomado como bem de consumo de
troca, mas também como moeda, prova disso são os empréstimos bancários. É a
própria mercantilização da vida.
2- O classicismo é evidente. A separação de classes econômicas por
zonas é mais clara que uma lâmpada acesa. Se pensarmos bem, não é diferente do
nosso mundo. Em qualquer cidade do Brasil e do mundo, pode-se ver uma distinção
entre “bairros nobres” e o resto. No Rio de Janeiro, por exemplo, a zona sul (o
nome realmente é zona sul, não é apenas trocadilho) possui os bairros nobres, a
zona norte possui os intermediários, o subúrbio possui os bairros pobres e as
favelas compõem os extremamente pobres. A única diferença entre a nossa
realidade e o filme é que não se precisa pagar pedágio para passar entre essas
zonas... Ainda. Seja lá quem for que tenha orquestrado isso na realidade do
filme, aproveitou-se bem da desigualdade e do tipo de moeda da sociedade, pois
uma pessoa pobre não vai nem pensar em abdicar de semanas ou meses de seu tempo
de vida (se o tiver) para ir para uma zona mais rica.
3- O funcionamento desse “capitalismo darwiniano” também é enfático
em suas consequências. O sistema se baseia no lucro de alguns em detrimento de
outros, nada de novo. E as consequências disso também não são novas, afinal, um
sistema que se baseia na desigualdade gera mais desigualdade. Por que a
sociedade do filme já não ruíra há muito tempo, então?
Bem, fica claro durante o decorrer da estória, quando Will e
Sylvia passam a roubar os bancos e distribuir o tempo, que muita quantidade de tempo
distribuído nas zonas pobres fariam o trabalhador parar de trabalhar. Então, o
método encontrado pelos banqueiros e investidores era aumentar o juro do
empréstimo e diminuir a facilidade de crédito do tempo de vida. E isso é uma
coisa que as pessoas pobres precisam muito (tanto no nosso mundo quanto no
universo do filme). Esta estratégia sinaliza que a moral e necessidade
intrínsecas do sistema são perpetuar a desigualdade socioeconômica, mas não a
ponto de quebrar o sistema, apenas para impedir a “mobilidade social” (que é a
capacidade de se mover entre classes sociais), ou seja, manter pobre quem é
pobre e manter rico quem é rico. O pobre vive até ter capacidade de ter filhos
e, assim, manter a quantidade necessária de mão-de-obra.
Nisso, seguindo a teoria de valor marxiana, ocorre a mais-valia. O
patrão, os banqueiros e empresários dão ao funcionário apenas o suficiente para
seu acúmulo social, ou seja, dão o suficiente para viver mal e “porcamente”,
para poder contribuir com um filho para o modo de produção capitalista.
Enquanto isso, tomam para si a maior parte do lucro, ganho pelo trabalho dos
empregados. Hum... Nem nos faz lembrar nada, não?
4- O filme, pelo menos, acaba com uma crise ocorrendo devido aos
assaltos aos bancos da família Weis e à redistribuição de tempo feita por Will
e Sylvia. Sugere-se a ideia de que vai ficar pior, pois, na última cena, a
dupla de assaltantes vai roubar um banco muito maior que todos os outros
assaltados antes.
5- Apesar de tudo, uma das coisas que mais me chamou a atenção no
filme foi que em nenhum momento eles dão a entender que há um Estado. Na
verdade, a falta de direitos trabalhistas, a liberdade dos patrões aumentarem a
cota de produção diária e a total falta de controle sobre o aumento do juro do
empréstimo sugere que não havia Estado nenhum, ou, se existia, tinha uma
participação nula na economia. A única coisa que remete à existência de um
Estado no filme é a Guarda do Tempo, mas não se sabe se é o braço armado do
governo ou uma empresa de segurança privada, já que essa Guarda só existe para
perpetuar o funcionamento do sistema e os interesses da elite. Em nenhum
momento, a Guarda do Tempo sequer deu premissas de ir atrás dos mafiosos da
zona pobre de quem Will salvou Henry no início do filme.
Novamente, nada que não tenha relação com a nossa realidade.
Vermelho à Esquerda
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