Carlos Eduardo Sarmento - O Estado de S.Paulo
Sérgio Cabral pavimentou o seu caminho para a reeleição com certa tranquilidade. Fazendo seu primeiro termo governativo se associar às iniciativas da chamada "Plataforma Up" (as Unidades de Pronto Atendimento de Saúde e as Unidades de Polícia Pacificadora), esgrimindo uma leonina austeridade fiscal e administrativa e surfando a imensa onda de otimismo e incremento da autoestima da população (provocada pelas escolhas para sede dos Jogos Olímpicos e para palco do jogo final da Copa do Mundo), Cabral construiu condições para figurar como uma das imagens símbolo de uma fortemente propalada recuperação do papel chave que o Rio de Janeiro exerceria no conjunto da federação.Apenas seis meses após a posse para o segundo mandato, o governador tem sua imagem pública circundada por uma moldura radicalmente distinta da que fizera dele o grande campeão das urnas de 2010. Denúncias de favorecimento a grupos empresariais se somam ao desgastante atrito público com os bombeiros e à desagregação de sua base política. Diante desse quadro, a semana que passou marcou um claro recuo por parte do governador e mostrou uma postura pública contida e fragilizada. Acenos tais como a anistia aos bombeiros punidos e a proposta de um código de conduta para os agentes públicos evidenciam a percepção de que o Sérgio Cabral do primeiro mandato se extinguiu e se encontra em vias de operar sua reinvenção.
Talvez estejamos diante do início de uma intrincada metamorfose. O desafio da sobrevivência política de um personagem que construiu seu lastro e seu nicho desde as primeiras incursões na vida político-partidária. O jovial candidato que se anunciava em outdoors como um produto "que não continha Brizola" prenunciava a proposta de construção de um novo eixo de poder no Rio. Ao observar os estertores de uma contraditória simbiose que fizera enraizar a praxis chaguista no brizolismo, Cabral adentrou a Assembleia Legislativa consignando o ato simbólico de lavagem das escadarias do histórico palácio que lhe serve de sede. A imagem de "renovação" viabilizou sua eleição à presidência da Alerj em uma memorável sessão em que se rompeu a tradição das votações secretas e se instituiu a transparência como norma.
Entre 1995 e 2002, presidiu a casa em um eixo de continuidade até então inédito na trajetória política do Estado. Se a sua longa permanência na chefia do Poder Legislativo era identificada como um feito, mais notável foi o meticuloso e quase invisível exercício de arquitetura política que fez confluir para as mãos do presidente da Alerj o centro de gravidade da dinâmica política fluminense. Leal parceiro e um dos principais fiadores políticos do governo Marcello Alencar, Cabral chegou ao último ano dessa gestão demonstrando claros sinais de autonomia. Seu pouco sutil apoio ao candidato oposicionista Anthony Garotinho, em 1998, deixava claro que as articulações políticas engendradas no Legislativo tendiam a suplantar a força da caneta do Executivo. Seu ingresso no PMDB definiu claramente os termos da consolidação de seu projeto de poder: a partir do Legislativo, estabelecer uma forte coalizão que suplantasse a fragmentação e a descontinuidade características do campo político estadual.
Sua chegada ao Palácio Guanabara representou a confirmação da vitória desse projeto. Derrotando o grupo político de César Maia e estreitando seus laços com o presidente da República reeleito, Cabral teve condições de desfraldar uma bandeira até então vista como longínqua e implausível hipótese na política do Rio de Janeiro: estabilidade e alinhamento de forças. Aproximando-se de um vetor interpretativo que identificava o caráter "oposicionista" fluminense como uma das matrizes da fragilização progressiva de suas forças políticas, Cabral pôde colocar em prática uma estratégia conciliatória que suplantaria a dicotomia capital x interior e alicerçaria a aliança colaborativa entre os governos estadual e federal. Arregaçar as mangas para fazer de Eduardo Paes prefeito e não defender o pênalti cobrado por Lula no gramado do Maracanã são duas fortes marcas simbólicas desse projeto.
Não escaparam ao treinado olhar do governador as mudanças que se operaram no terreno sobre o qual se move. Uma gradativa desconstrução das forças locais de apoio e a mudança na pauta das relações políticas no governo Dilma foram os principais sinais percebidos. Sinais que o forçaram a tratar dessa possível metamorfose em curso. O desgaste de sua imagem pública, característico da longa exposição, não mais lhe possibilita a blindagem contra as denúncias relacionadas ao convívio promíscuo com empresários e "financiadores de campanha". O projeto de segurança pública expõe claramente seus limites e contradições, enquanto a preparação para os grandes eventos esportivos traz a incômoda percepção do uso indiscriminado de recursos públicos. Não parecem existir em seu repertório imediato grandes inovações ou fatos que possam impregnar o noticiário com uma aura de legitimidade à ação do governo.
Nessa ambiência, Cabral buscou formas de redefinição de sua marca. Assumiu, talvez subestimando a reação do eleitorado conservador, uma clara política pública anti-homofobia. Errou na dose ao confrontar-se de forma radical com os bombeiros. Embora tenha percebido nessas manifestações sinais de articulação política de adversários (notadamente, o grupo político de Garotinho), Cabral viu diante de si o risco político de uma inédita rejeição popular. Pressionado, o governador recua. Possibilidade de mudança de partido, fragmentação das bases políticas, ressurgimento de adversários locais, hiato no diálogo com o governo federal - diante dessas novas variáveis, será preciso operar uma complexa reestruturação das bases e da orientação de seu projeto político. É um momento decisivo na trajetória de Cabral, no qual estão em jogo não somente seu futuro, mas o das forças políticas do Rio de Janeiro.
CARLOS EDUARDO SARMENTO, DOUTOR EM HISTÓRIA SOCIAL PELA UFRJ, É COORDENADOR-GERAL DA ESCOLA SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS
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