Dirigentes civis da ditadura proveram os meios políticos para assassinatos e torturas. |
A Comissão da Verdade nasce com o poder de convocar pessoas que
tenham relação com casos de tortura, morte, desaparecimento e ocultação
de cadáveres, identificando e tornando públicas as estruturas, locais,
instituições e circunstâncias relacionados aos crimes contra os direitos
humanos, entre 1946 e 1988. O foco vai ser a Ditadura Civil-Militar,
que controlou o Brasil de 1964 a 1979 (ou até 1985, como consideram
alguns).
Desde que o livro “1964: a conquista do Estado”, de René Armand
Dreifuss, foi publicado em 1981, a expressão “ditadura civil-militar”
passou a ser incorporada a qualquer iniciativa honesta de compreender e
investigar o tema. Sobre isso, merece atenção o artigo “A ditadura
civil-militar”, do professor Daniel Aarão Reis (O Globo, 31-3-2012).
DIRIGENTE CIVIL DA DITADURA
“A obsessão em caracterizar a ditadura como apenas militar levou, e
leva até hoje, a marcar o ano de 1985 como o do fim da ditadura, porque
ali se encerrou o mandato do último general-presidente. A ironia é que
ele foi sucedido por um político — José Sarney — que desde o início
apoiou o regime, tornando-se ao longo do tempo um de seus principais
dirigentes…civis”.
Aarão Reis pergunta se estender a ditadura até 1985 não seria uma
incongruência e observa que o adjetivo “militar” o requer: “Ora, desde
1979 o estado de exceção, que existe enquanto os governantes podem
editar ou revogar as leis pelo exercício arbitrário de sua vontade,
estava encerrado. E não foi preciso esperar 1985 para que não mais
existissem presos políticos. Por outro lado, o Poder Judiciário
recuperara a autonomia. Desde o início dos anos 1980, passou a haver
pluralismo politico-partidário e sindical. Liberdade de expressão e de
imprensa. Grandes movimentos puderam ocorrer livremente, como a Campanha
das Diretas Já, mobilizando milhões de pessoas entre 1983-1984. Como
sustentar que tudo isto acontecia no contexto de uma ditadura? Um
equívoco?”.
MEMÓRIA INTERESSADA
Como demonstra Aarão Reis (que combateu a ditadura, foi preso e
exilado), não se trata de equívoco, mas de uma interessada memória. “São
interessados na memória atual as lideranças e entidades civis que
apoiaram a ditadura. Se ela foi “apenas” militar, todas elas passam para
o campo das oposições. Desde sempre. Desaparecem os civis que se
beneficiaram do regime ditatorial. Os que financiaram a máquina
repressiva. Os que celebraram os atos de exceção. O mesmo se pode dizer
dos segmentos sociais que, em algum momento, apoiaram a ditadura. E dos
que defendem a ideia não demonstrada, mas assumida como verdade, de que a
maioria das pessoas sempre fora — e foi — contra a ditadura”.
Fala-se que o Brasil e o povo não têm memória, mas o que se vê hoje
no caso da Ditadura Brasileira é uma abundante memória seletiva e
conveniente, como toda memória, produzida e difundida pelos poderosos e
vencedores de sempre. Diz o professor Aarão Reis: “No exercício desta
absolve-se a sociedade de qualquer tipo de participação nesse triste — e
sinistro — processo. Apagam-se as pontes existentes entre a ditadura e
os passados próximo e distante, assim como os desdobramentos dela na
atual democracia, emblematicamente traduzidos na decisão do Supremo
Tribunal Federal em 2010, impedindo a revisão da Lei da Anistia.
Varridos para debaixo do tapete os fundamentos sociais e históricos da
construção da ditadura”.
ROLO COMPRESSOR
A “verdade”, pelo menos na política, é uma construção dos vencedores
da ocasião e, portanto, o nome “Comissão da Verdade” é problemático. E,
por enquanto, a possibilidade dessa comissão trabalhar com autonomia e
alcançar algum êxito na sua missão é apenas uma aposta que se pode
fazer. O Planalto avisa que ela terá caráter de órgão de estado, e não
do governo petista. Os nomes parecem dignos da função. Mas não vamos
esquecer que, há dez anos, os estado brasileiro passou a ser um aparelho
do PT e qualquer desvio dessa regra, como ocorre agora com o
procurador-geral da República, Roberto Gurgel, e com os ministros do
STF, no caso do Julgamento do Mensalão, é atropelado pelo rolo
compressor do partido e do governo. Se instituições como o Ministério
Público e a Corte Suprema são pressionadas dessa forma, o que esperar de
uma comissão de notáveis?
Será que a Comissão da Verdade pode convocar José Sarney, o eterno
vencedor da política brasileira? Presidente do Senado, ele é o maior
avalista do governo petista no Congresso Nacional. Oligarca do Maranhão,
o estado mais miserável do Brasil, foi eleito governador em 1965, com o
apoio do primeiro ditador, o general Castelo Branco. Foi presidente da
Arena e do PDS, os partidos que sustentaram a farsa do parlamento
durante a ditadura. Mudou de lado com o vento da democratização e quis a
nossa tragédia que se tornasse Presidente da República.
Alguns dizem que Lula é o Macunaíma da política nacional, positivando
a falta de caráter do herói. Mas esse título, se coubesse, teria de ser
de José Sarney. De qualquer forma, comparar Lula e Sarney a Macunaíma é
uma terrível falta de respeito para com o personagem de Mario de
Andrade.
INVERSÃO DO AFORISMO
Em seu curso no Collège de France, em 1975 e 1976, focado no tema do
poder, Michel Foucault propôs a inversão do aforismo de Carl Von
Clausewitz, segundo o qual “A guerra não é mais que a continuação da
política por outros meios”. Foucault suspeita que ocorre o contrário: “A
política é a continuação da guerra por outros meios”. Assim, diz, na
aula de 7 de janeiro de 1976: “Sempre se escreveria a história dessa
mesma guerra, mesmo quando se escrevesse a história da paz e de suas
instituições”.
Vamos ver, portanto, a que veio a Comissão da Verdade: vai fundo
sobre os dirigentes civis que proveram os meios políticos para
assassinatos e torturas, ou vai se restringir aos militares e policiais
que fizeram o trabalho sujo nos porões, simplesmente reescrevendo a
velha história da mesma guerra?
NOTA: Antes que algum apressado diga que este texto é de um direitista que quer proteger militares assassinos e torturadores, informo que no dia 31 de março de 1964 eu era um estudante que militava no movimento secundarista do Rio de Janeiro. Fui para a rua no final daquela tarde logo que ouvi os primeiros rumores do golpe e só voltei para casa na noite de primeiro de abril, chorando, debaixo da chuva fina e do papel picado que caía dos prédios festejando a “revolução redentora”, depois de ter estado na porta de sindicatos, chamando trabalhadores para a resistência, de participar da ocupação da Faculdade de Filosofia, de levantar barricada na UNE, na Praia do Flamengo, e de protestar na Cinelândia, em frente ao Clube Militar, fugindo de lá debaixo de tiros. Desde aquele dia não parei um momento de lutar pela democracia. Fui preso, torturado e sofri perseguição durante anos. Com erros e acertos, derrotas e vitórias, sei que a vida não pode ser diferente para mim.
Altamir Tojal Tribuna
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